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O DOCE BORDADO AZUL - 4º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 4º capítulo Capítulo IV Adágio Naquele momento, nem o escasso sol em Minsk, produzia algum indício de esperança para Bárbara. Tão inóspita quanto o clima era a sua alma perturbada e triste. Voltar para casa sozinha, sem o aconchego do parceiro, trazia-lhe à alma um vazio urgente, que seus olhos revelavam, assim perdidos na vidraça do táxi. Registrada na retina, ainda alguns poucos amigos se despedindo, falando entre si a tragédia inesperada, um zum-zum dos alunos que se espalhava, vozes abafadas comentando num linguajar alterado e despretensioso, como se ela não pudesse decifrar. O pouco que conhecia da língua russa, permitia-lhe entender o que comentavam. Observou que o taxista falava sobre a proximidade do verão, mas não comentou nada. Deixou-se ficar quieta, quase imóvel. O homem a fitou pelo retrovisor e calou-se, também pensativo. Quando chegou no quar

O DOCE BORDADO AZUL - 3º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 3º capítulo A vara verde Quando a mãe chegou já passavam das quatro horas. Lúcia havia desistido de procurá-la, de telefonar aos conhecidos, procurar nas farmácias próximas, arriscar-se fisicamente. Afinal, uma mulher sozinha, como ela, andando pelas ruas, altas horas da noite, poderia sofrer um assalto, tomar parte numa batida policial, exigirem seus documentos, desconfiarem de suas atitudes. Sua mãe não deveria sair sem avisar-lhe. Foi um despropósito, uma desconsideração. Agora estava estirada na cama, resguardada pelos anjos, sonhando sabe lá Deus com quê, e ela, Lúcia, acordada, incapacitada de dormir, tão agitada se encontra. Tinha vontade de acordá-la, impedir-lhe o sono tranquilo intercalado de roncos assustadores, interceptar-lhe a paz. Mas nada resolveria, a não ser prolongar o seu sofrimento, a sua raiva. Além disso, viera com a desculpa infantil que

REFUGIADOS EM SEUS SONHOS

Nem que se diga, que lhes faltou o peito, nem que a fome durou; nem que se saiba que a vida é árdua e a escola seja talvez o único acesso à dignidade. Nem que os pais não lhes provejam o amor ou que o abandono se torne perene. As crianças deveriam sempre vencer as dificuldades, sobreviver e se tornarem homens e mulheres mais fortes e guerreiros. No entanto, às vezes, o homem no seu poder canhestro e torpe, investe na vida dos povos, interferindo em sua trajetória. E o poder se revela na intolerância religiosa, na ganância dos modelos econômicos, no imperialismo dos governos. Gostaria de falar de nossas crianças em seu dia, de seus sorrisos, suas procuras pelo abraço e carinho, seus encontros e descobertas. Mas como esquecer as que aparecem em nossos monitores diariamente, pedindo socorro ou registrando a sua falência. Como esquecer entre tantas, a menina praticante de Candomblé que foi agredida na escola, vítima de preconceito religioso, por outras de sua idade, que

O DOCE BORDADO AZUL - 2º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quinta-feiras publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o segundo capítulo.(quinta-feira 01/10/2015) Capítulo II O estorvo Lúcia estirou-se na cama desfeita, talvez pensando em dormir e esquecer tudo que havia acontecido: a morte de Irmã Dolores, a visita de Irmã Carlota, o comunicado, a carta. Não queria saber nada daquilo, por enquanto. Mas os pensamentos a induziam ao problema, por mais que quisesse dispersá-los, estavam em sua mente, alertas, viçosos, firmes, à espera de uma solução. Pensou no bordado primaveril da mãe. Percebia nele, os caminhos suaves, bem demarcados, conduzindo a um mundo ensolarado, de paz e alegria. Gostava dos bordados. Tinha carinho por eles. Conhecia-os desde que se tomara por gente. A mãe bordando, sentada na poltrona, encostada na janela, olhando de vez em quando para a rua, para a vida. Raramente a via sair, e quando o fazia, parece que escolhia o momento em que ela não se encon

Que venhas logo

"Elaborei este poema antes que ela viesse. Agora já está por aí, meio parecendo outra." Quero esta mulher perto de mim, ouriçando meus cabelos Sentindo seu bafejo próximo, tão próximo que o aroma arrepia-me os pelos Quero-a mais próxima, levando tudo por diante Não a quero calma, pacata, silenciosa Quero-a guerreira, firme e enérgica Quero que espalhe a luz, que empurre as folhas, que vergue os troncos Quero-a resistente, alvissareira e alegre. Quero-a, sobretudo num clima ameno, que antecipe o verão. Quero que passe o inverno e que chegues rápido, primavera!

OS DEZ TEXTOS MAIS LIDOS NO MÊS DE SETEMBRO DE 2015

Agradeço aos amigos do blog pelo sucesso dos textos. Muito obrigado. 1º lugar : Vida de gado 2º lugar: As rádios locais e as tvs regionais : os sonhos e as mudanças culturais 3º lugar : A lua, a Apollo 11 e minha avó 4º lugar: Para quem "a paz de Cristo”, não passa de um cumprimento social 5º lugar: Como se desenvolve a criação 6º lugar: Desenhos, história e castigo 7º lugar : Um natal distante 8º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros 9º lugar: A fuga de meu cão 10º lugar: Noite eterna

O DOCE BORDADO AZUL 1º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quinta-feiras publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul ". A seguir o primeiro capítulo . O DOCE BORDADO AZUL Capítulo I A mortalha Chegava em casa, ofegante. Os cabelos em desalinho, a pele esbranquiçada, brilhante pela luz artificial do hall. Abriu a porta devagar, com os dedos trêmulos, as pernas ainda doíam pelo excesso de subir a ladeira, o salto do sapato titubeava no portal de pedra. A mãe lá dentro, absorta no bordado. Sentada na poltrona, perto da janela, mãos delicadas deslizando rápidas a linha branca, misturando-a com violeta, azul, amarela. Tudo ficou turvo nos olhos de Lúcia. Nem viu o bordado. Nem o deslizar suave da agulha, nem a voz enfadonha da mãe, perguntando se tinha chegado. Correu em direção ao quarto. Lavou várias vezes o rosto, ajeitou os cabelos, tentando se recompor. Respirou fundo e ficou observando o espelho embaçado por alguns minutos. Uma dor lancinante nas costas a fez gemer. Tentou dobrar

PARA QUEM "A PAZ DE CRISTO", NÃO PASSA DE UM CUMPRIMENTO SOCIAL

A paz de Cristo é um cumprimento que ocorre na missa, no momento em que se transmite ao outro, ao fiel que está ao nosso lado, este sentimento de plenitude e paz que Nosso Senhor nos outorgou e que hoje repetimos nos rituais litúrgicos. É um momento lindo, de pureza e afeto, que nos une um pouquinho ao divino e nos deixa mais humanos, mais próximos do outro, mais ligados à fé. Entretanto, às vezes, nem sempre este ato beneplácito é usado de forma natural. Muitas vezes, o cumprimento não passa de uma atitude estereotipada, usada apenas no aspecto social, quase uma obrigação. Nestes momentos, penso que estas pessoas deviam passar longe da igreja, ou caso participem de alguma atividade religiosa, que o façam com dignidade. Se não gostam da pessoa, que permaneçam com seus rancores ocultos, que se afastem e se juntem aos seus pares, mas não utilizem as palavras de Cristo como um modelo artificial, apenas para demonstrar em público, uma educação (que em regra) não possuem. Acho que Cristo

Noite eterna

Com tantas palavras inúteis, tantas acusações e tiros pra todos os lados, fiz este poema. Espero que a lei maior, a nossa Constituição legitime o povo grávido de verdade. Se a noite gira ad eternum e os homens brilham ao luar por que se encantar com as luzes se nada podem provar? mentiras que saem dos termos dos que proclamam a luz só trazem contornos enfermos do apelo que a ti seduz nao temer as verdades obtusas nem ferver as entranhas nas febres por certo é viver às escusas da lei maior que entoa do povo que vive prenhe de um mundo que clama à toa

Minha avó e a Apollo 11

Havia um clima de angústia e alguma agitação na casa. Foi no dia do casamento dos dois. Minha avó estava deitada em seu quarto. Eu tinha a impressão de que ela observava a minha mãe com um olhar de súplica e até um pouco de desconfiança. Talvez imaginasse que aquele casamento pudesse curar a sua doença, ou pelo menos, não a matasse de vez. Minha mãe, ao contrário, por mais que evitasse demonstrar, apresentava uma inquietação em cada movimento ou conversa. No fundo, ela sabia que a morte era inevitável. Apenas, desejava que a mãe não sofresse tanto! E aquela falta de ar que não passava, aquela angustiosa espera de que alguma coisa acontecesse e por um milagre, ela voltasse a conversar normalmente, a respirar com fluidez, voltar a sorrir. Minha mãe chorava pelos cantos, mas na frente dela, sorria e dava esperanças. Meu avô parecia não entender bem aquela história, mas aceitava pacificamente a ideia do casamento. Não sabia porque a filha inventara um casamento religioso, tant

VIDA DE GADO

VIDA DE GADO Desci do ônibus enfrentando aquela pequena multidão envolta na bruma. Vestiam roupas pretas. Esfregavam as mãos, tiritavam de frio. Uns fumavam, absortos, aquecidos na garganta pelo poder da chama. Pigarreavam às vezes. Meu pai puxava-me o braço, ansioso. Não se sentia bem entre eles. Parecia querer fugir do lugar. Ouvi as badaladas ao longe. Seria hora da missa? Senti a mão pesada de meu pai em minha cabeça. Que queria ele? Abrigar-me da cerração, proteger-me do frio, apressar-me o passo? Caminhamos rápidos, pela rua pavimentada em cinzas de carvão. Ele, passos largos, pernas compridas. Eu, aos tropeços, pernas curtas. A pequena multidão já se desfazia ao longe. Quase não os víamos e já nem sabia se era noite ou tempo ruim. O frio congelava o nariz. Dei mais uma volta na manta, ajeitei o casaco nos ombros, puxei a gorra para os olhos. Meu pai também acertou o chapéu, que custava-lhe ficar à cabeça. Minhas botinas estavam gastas. Sentia na planta dos pés, os pedregulhos d

As rádios locais e as tvs regionais, os sonhos e as mudanças culturais

Quando crianças, via de regra, temos um mundo interno muito rico, e um tanto dissonante com a realidade. As crianças vivem num mundo imaginário e interagem de acordo com a interpretação que estabelecem para si mesmas. Para os dias de hoje, é absurdo se pensar que alguém, até mesmo uma criança, possa imaginar que uma rádio local possa ter um elenco refinado de artistas, cantores, atores e atrizes que lá permancem para executar suas obras, fazer suas perfomances e encantar os ouvintes. Sabe-se que atualmente, tudo é gravado e a maioria dos programas vem dos grandes centros, principalmente do eixo Rio-São-Paulo onde a dramaturgia e os grandes shows musicais acontecem. Onde a música tem realmente importância comercial e os grandes artistas se salientam a partir destas “trincheiras" de arte e marketing. Por essa cultura dos grandes centros, as crianças de hoje e as pessoas em geral, sabem que a maioria dos sucessos vem de lá, que a arte regional é praticamente esquecida, com rarís

A FUGA DE MEU CÃO

Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma pata branca, destoando das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo. Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo.