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Mostrando postagens com o rótulo verão

Um mergulho

Um mergulho significa muito, mergulho nas ideias, na observação das pessoas, nas trajetórias cotidianas. Um mergulho no mar, bem assim, no finalzinho do verão. Absorver cada gota em nosso corpo sedento. Sentir o revirar das ondas, o vai e vem das correntezas, o repuxo e, de vez em quando, a calmaria, uma pausa para respirar, olhar as dunas e voltar ao processo do enxague, de percepções quase etéreas dos respingos no rosto ou densas, espalhando-se pelo corpo e derrubando-nos as pernas. Os mergulhos se dão sem que nos demos conta, mergulhos em pensamentos, que descontrolados, vão e vem das mais distintas intuições ou sentimentos. Como as ondas, eles crescem desordenados, embora tenham um objetivo intenso e final, que é o de nos alertar de alguma coisa que nos incomoda, um perigo iminente, real ou imaginário, um perigo talvez ao ato de viver plenamente. Mas é preciso apaziguá-los, como a pausa das ondas, deixar que o repuxo se desvaneça e espumas se produzam, desenhando traços e abrind

Quase um arco-íris

Observar as árvores ao longe, o cheiro da grama tão próxima, os raios da roda girando, girando e uma sensação plena de felicidade. Andar, andar, andar. Voltar para a praia, descer na areia, deixar a bicicleta no chão e olhar o céu, apenas o céu. As luzes, aos poucos se dissipando e longe, bem longe, luzes refletidas da lua ou próprias das estrelas, não sei. Um vento, uma brisa, mais aromas. Suaves aromas. Aquele perfume patichouli, pura canabis, que passa nas pernas lentas do menino e se dispersa na areia, em direção ao trapiche. Um perfume suave e profundo. A sensação de que o mundo para, por um segundo, e o céu nem mesmo está tão distante, ao contrário, está aqui, se fundindo com o mar, tão próximo que posso segui-lo. Mas fico aqui, na areia, usufruindo os últimos raios do sol, o crepúsculo que me confunde e anima. A areia é fria e suave, a bicicleta jaz quieta, voltada pra mim, como se me aguardasse, cúmplice. Talvez surja mais alguém neste fim de verão e crianças corram atrás

O topo da montanha

Nem lembro como cheguei ao topo daquele morro, provavelmente na curiosidade inata de um adolescente. O mundo corria devagar lá embaixo, as borboletas sobrevoavam alto e eu tinha a impressão de que somente o som dos pássaros se ouvia. Acho que era verdade. Os sons eram quase que coordenados, havia tons mais fortes, mais agudos, mais graves e tons que sobreviviam ao silêncio e às distâncias fazendo eco. Devia ser uma tarde de dia claro, muito claro, porque o anoitecer demorara muito, se bem que era verão. Olhava para baixo, para aquelas montanhas moduladas em azul esverdeado, ou ao contrário. Lembro sim, como cheguei, só não sei para onde ia. Eu queria dar uma volta pela pequena cidade, ao passar a metade do caminho para casa, uns trezentos quilômetros. É, estava muito longe de casa e não me podia furtar àquele momento. Na alma, uma melancolia rara. Rara naquele ambiente, produzido por aquele cenário. Porque via de regra, eu tinha esses devaneios. A dor parecia me acompanhar, mesmo

O verão agoniza

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso. Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar. Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou. Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado: me

O VERÃO AGONIZA

Nem sempre a noite clara, a brisa entre o arvoredo, a avenida com luzes esparsas pairando sobre bancos e jardins, parecem a plenitude da paz no fim de verão. Pode ser sim o reflorescer das esperanças dos que se reencontram, o harmonizar do mate solitário no banco de madeira, o gorjear dos pássaros noturnos que sinalizam o início do descanso. Ou a emboscada da solidão que martela de leve os que carregam na mochila pesada de vazios, a busca insensata das bebidas e drogas, do ser não sendo quase nada, dos que mendigam amores e dinheiro no chão das esquinas desenhado entre folhas e luar. Outro dia, o vi recolhendo latinhas perto do parque infantil. Fumava uma bagana e parecia procurar alguma coisa indefinida, talvez uma dúvida da qual não se livrava. Olhou-me de soslaio e sem vacilar, disparou: o que é cupincha? Surpreso, respondi indeciso: comparsa. Ele reagiu com um grunhido e silenciou. Pensei em afastar-me, mas perguntei se juntava muito material à noite. Ele repetiu cismado:

A GOTA DERRAMOU

Sabia o quanto ainda o esperaria. Guardou os chinelos, desfez-se do roupão e deu uma arrumada na casa. Tinha consigo que precisava cumprir o método. Rotina. Repetida, contínua, perfeita. Não devia se prestar a devaneios, a pensar coisas que não se referissem à família. Bem que pensava em si, às vezes. Pensava numa vida fulgurante, cheia de brilhos, luzes ofuscantes nos olhos cinzentos. Como seus olhos poderiam ter um tom assim? A mãe, via de regra, a chamava de olhos de gato. Achava-a, no fundo, estranha. Mas que fazer, se até sua mãe a criticava com tanta acidez. A vida lhe parecia dura, às vezes. Era uma mulher perfeita: boa mãe, ótima esposa, excelente dona de casa. Não era uma mulher de seu tempo. Não trabalhava fora, como as amigas. Amigas? Muito poucas, aquelas que sobraram dos bancos de escola, das poucas baladas que participara, das noites de verão, quando ficava na casa de uma tia, lá em Florianópolis. Eram dias felizes, em que conhecera rapazes diferentes dos de sua c

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos. Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso. Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol. Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano. Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta. Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória. Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para es