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Mostrando postagens com o rótulo passado

Duas sensações jamais serão iguais

Às vezes, pensamos que podemos repetir o passado e viver aqueles momentos que julgamos felizes e únicos. Entretanto, nada pode ser revivido, nada volta. Não voltam os momentos felizes, nem quaisquer lembranças se tornam acontecimentos novamente. O pensador Heráclito dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio, pois quando nele se entra, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Seguindo o raciocínio de Heráclito, podemos afirmar que ao mergulharmos na praia, jamais teremos as mesmas partículas de água, os mesmos movimentos, as mesmas marolas. Nem mesmo o ar, os ventos e o calor do sol serão os mesmos. É uma outra praia, um outro mar, um outro rio, um segundo depois de termos entrado. Quando se caminha na areia e retornamos no mesmo espaço, as pegadas nunca mais serão as mesmas. Nem as ondulações da areia, nem os grãos que mascaram os pés, nem o sol que as aquece. Nem os animais visíveis e invisíveis, nem a poeira que se estabelece a nossa passagem, nem a d

Traço caminhos

Quando vires minha mão estremecer, não faças diagnóstico sobre meu estado físico ou emocional. Quando perceberes meu olhar flutuar, não penses que meus sonhos já se foram. Quando ouvires meus argumentos, não te surpreendas com meu desabafo dilacerado. Quando notares que mal me movimento nas noites, não julgues a falta de jeito. Não conheces minhas dores, nem meus pensamentos. Não sabes de onde venho e de meu desamparo. Não peço teu acolhimento, talvez apenas teu olhar. Pode ser assim, oblíquo e disfarçado, pode ser apenas a visão de um segundo. Pode ser um gesto perturbado de um espaço invasivo, mas que não seja hostil. Não precisas falar, nem sorrir. Talvez, apenas que reconheças a minha humanidade, como a tua. Quando estiver em frente a tua casa, na soleira de tua porta, no toque da campainha, apenas pergunta o que quero. Saberás da minha fome como necessidade básica e também emocional. Saberás que vou além do ser, quase objeto, que perpassa a tua fronteira, sou também alma esco

Todos eram puros e inocentes no passado? Nem tanto!

Acho notável que as pessoas tenham boas lembranças e sintam saudade dos tempos de infância, entretanto, há coisas que não entendo. Não entendo quando afirmam com veemência que naquela época, tudo era maravilhoso, a ponto de haver uma uniformidade nos costumes, cujos cidadãos eram pessoas extremamente afáveis, solidárias e felizes. As crianças eram educadas, disciplinadas e prestativas, os pais severos, conciliadores e gentis, os professores profissionais exigentes e respeitados na sala de aula e o mundo girava sob The The Sound Of Music, da Noviça Rebelde. Segundo estes relatos, os meninos entravam na igreja compenetrados, arrumando o cabelo e fazendo silêncio para ouvirem as orações, enquanto as meninas, por sua vez, se deparavam caladas, em frente aos santos, rezando para que suas provas não fossem muito difíceis ou para serem pessoas melhores. Os vizinhos sentavam nas calçadas, tomavam chimarrão ao anoitecer e jogavam conversa fora. Todos eram amigos, e nos natais, compartilhavam

Os trilhos dos sonhos

Observei os trilhos da velha e desativada ferrovia. Os mourões corroídos, mostrando veios em suas entranhas, com pequenas lascas adormecidas, que aos poucos se desmanchavam sob o sol. Tudo aos poucos se consumia pela ação do tempo. Quem dera, pudéssemos, num passe de mágica, reconstruir a malha ferroviária, restaurar os trilhos reluzentes e seus dormentes com a bitola adequada, permitindo que centenas de trens atravessassem a cidade, encontrando seus destinos e construindo outros, mais longínquos e eficazes. Mas a mágica é só uma ilusão e como tal, apenas ilustra nossos sonhos. . Uma mulher de salto alto, caminha despreocupada por alguns dormentes restantes da velha derrocada. Talvez expresse intimamente a vontade de vivenciar uma história passada, um roteiro que fazia quando criança, ou um encontro que ousasse reviver. Caminha displicente e de vez em quando, se volta, oportunizando em meu olhar também um desejo de descoberta. . O que procura aquela mulher num lugar quase aba

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas. Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro. Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria. Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes

A CASA OBLÍQUA - CAP. XVIV

Clara acordou ainda recordando a visita à Dona Luisa. Tinha a impressão de vê-la assim, tão próxima, que a imagem ficava na retina e custava a dissipar-se. Mas agora, devia tomar suas providências. Assumir o que de fato lhe pertencia: o apartamento ao lado. Não deixaria que o tomassem, principalmente pessoas que nunca a procuraram, que nunca se importaram com a sua vida. Muito menos, Cida, uma sem-teto, que agora cismava em surgir à janela, desafiando-a. Levantou-se com uma tontura que a atingia e a deixava sem tino, como se desconhecesse os caminhos de sua casa. Esforçou-se em tomar um banho rápido para acordar-se de vez. Antes de despir-se, Clara ainda avistou os livros atirados no chão, cópias de artigos espalhadas e a monografia por fazer. Sentiu um empuxo como se aquela visão a obrigasse a retornar à realidade. Foi só um segundo. Deu de ombros, desleixada. Passou pelos objetos, chutando-os, como se os retirasse para sempre de sua vida. Avançou para o banheiro e organizou

IOLANDA

Fonte da ilustração: Aravind kumar, do site https://pixabay.com Iolanda desceu as escadas lentamente. Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo. Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio. Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares. Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Estava sôfrega. Um cansaço parecia acumular-se nos ombros. Aflita dirigiu-se à praça, atravessando a avenida deserta. Que horas seriam? Mais de 3 horas num numa madrugada qualquer da semana, sem qualquer possibilidade de movimento. Um cão ladrava ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores. Olhou para o alto. A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário. Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total. Decidiu sentar-se e a madeira do banco martirizava a sua coluna. Mexia o corpo para frente, de vez enquanto par

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos. Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso. Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol. Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano. Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta. Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória. Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para es

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa. Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem. Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia. Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio. No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa. Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro. Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes. Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso

O DOCE BORDADO AZUL - CAPÍTULOS 6º E 7º (em sequência)

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir apresentaremos dois capítulos, o 6º e o 7º capítulo. Capítulo VI O telefonema Lúcia acordou de madrugada, envolta em pesadelos estranhos, misturando imagens do dia, a visita de Madalena, o enterro de Irmã Dolores, a carta, a mãe na cirurgia, o cheiro de hospital, numa mistura de comida e medicamento. O coração pulsava descompassado e ela desconfiava que mais dia menos dia, ele lhe prepararia uma surpresa, tal era o desregramento de sua batida. Levantou, meio tonta, talvez pelos comprimidos de tarja preta ou pelo susto dos pesadelos. Afastou-se do quarto, dirigindo-se à cozinha e dando na passagem, uma espiada para a rua. Sentia frio e medo. Medo de ser assaltada, naquela casa, solitária, como estava, sem a presença da mãe. Se ao menos pudesse falar com os vizinhos, mas os muros eram tão altos e as janelas cheias de grades e ferrolhos imensos, jamais abertas. Ainda