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As sutilezas da felicidade

Os dias pareciam dissolver-se no anoitecer que se alongava. Ao voltar do trabalho, o seu hábito era tomar o chimarrão, enquanto ouvia o Repórter Esso. Após o jantar, costumava abrir o Correio do Povo para lê-lo na mesa. Era um ritual ao qual estávamos habituados e sempre interagíamos entre algum comentário ou mesmo sobre a dúvida de um vocábulo desconhecido. Olhávamos para meu pai e procurávamos descobrir a solução através de dicas que ele informava. Lembro de minha irmã e eu buscando métodos mais rápidos para chegarmos a algum resultado. Ela pegava os dicionários ou revistas nos quais houvesse palavras semelhantes. Também ele tinha por hábito pesquisar os atlas, cujos mapas mostravam centenas de países e cidades das quais nem imaginávamos a procedência. Até mesmo no Brasil, começávamos com as capitais, depois as cidades do interior e teríamos que procurar no mapa e ao acertarmos, ganhávamos um ponto. Tudo era considerado uma competição, na qual nos esforçávamos para chegar à

Pai de menina

Pai é ser paciente, é apoio, é conciliação, é encontro, é busca, é espera, mas é sobretudo presença. Pois, pensando bem, ser pai é passear ao lado do filho pela calçada, sugando o ar da manhã e contando histórias enquanto se encaminha para a escola, é talvez empurrar a bicicleta e soltar antes que a criança pare de pedalar e pense estar ainda apoiada e ao mesmo tempo imaginar que já conduz sozinha, quando o pai ainda segura a bicicleta. Talvez seja também levá-la à praia, conduzi-la ao mar, perpassar as ondas, segurá-la e fingir que aprende a nadar. É ser criança de repente, como ela e fingir que é adulto. Ser pai, talvez seja uma moldura ativa que corre pela cidade, afoita e embriagada de ar puro, quando avista a menina, esperando a foto, na entrada do teatro em que dança, ou na academia, ou na volta do passeio. A moldura que espera a foto para ser personificada e guardada na lembrança. O pai e a bailarina. Ser pai é esperar que as horas passem no vestibular e agradecer a ajuda do

O piquenique

Aquela noite seria longa, mas provavelmente eu tenha caído no sono em seguida. A manhã chegou tão rápida que me ocupei de minhas coisas de modo a não perder um detalhe, a não esquecer a bola de vôlei, o estilingue e os guides. A mala era pequena, eu não tinha aquelas mochilas modernas, não, era uma mala esquisita de lona e papelão. Quando levantei, às 6 horas mais ou menos, tudo estava pronto, ou quase pronto à mesa, pois a condução que nos levaria ao passeio sairia às 7:30 horas. Minha mãe se desdobrava em fazer o lanche e mais do que isso, dar os habituais conselhos. Não pega muito sol, te cuida dos lugares perigosos, olha os precipícios, fica sempre atento e não te afasta do grupo, muito menos da professora. Ela será o teu guia. Não precisava de tudo aquilo, mas era de praxe. As horas passavam rápidas, mas a escola ficava apenas quatro quadras de minha casa. Nada que fosse atrasar-me. Eu estava ansioso. Ouvia com uma mão na mala e outra na xícara, atento ao que meu coração

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/ Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo. Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido. Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje. Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os

A alteridade no romance “O filho eterno” de Cristóvão Tezza

Muito se tem falado sobre o romance “O filho eterno” de Cristóvão Tezza, inclusive o livro virará filme em 2017. Há centenas de predicados e muitas considerações críticas favoráveis ao romance, o que sem dúvida condiz com a reconhecida qualidade literária do autor. Numa publicação anterior dissertei um pouco sobre o conceito de identidade e alteridade, por isso gostaria de fazer uma relação do conceito da alteridade que se percebe no relacionamento do protagonista com o filho e consigo próprio. Este fato remete à identidade e à alteridade, no sentido do protagonista (o próprio escritor) ver no outro (o filho) o desfecho de uma perspectiva que não aconteceu, em virtude da Síndrome de Down. “O filho eterno” de Cristóvão Tezza seria o encontro do homem consigo, na perspectiva de ser pai e criador de sua própria tessitura literária, mas a trama revela num primeiro momento o desencontro de um pai que tem o filho com Síndrome de Down. Com o decorrer da narrativa, fica claro

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IV

HOJE TERÇA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O QUARTO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.A RELAÇÃO DE ÚRSULA E SUSANA, CADA VEZ A COLOCA FRENTE A FRENTE COM SEUS PROBLEMAS E COMO CONSEQUÊNCIA UM APRENDIZADO QUE VAI SE EFETUANDO. CONFLITOS QUE SURGEM E ENFRENTAMENTO COM SEUS MEDOS E ERROS DO PASSADO. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE E AFETO. Capítulo 4 Às vezes, me surpreendo pensando em meu pai. Nem sei se em virtude da visita, mas as lembranças me vêem tão nítidas, tão poderosas, que tenho a impressão de experimentar as mesmas sensações daquela época. Esta noite, eu até sonhei, imagine, eu sonhar, eu que permaneço eternamente em minha janela, olhando o mundo, deixando que as coisas aconteçam, esperando que os últimos rumores da noite sosseguem dando lugar ao silêncio perturbador. Você vê, Rita, como são as coisas: fico ouvindo os primeiros gorjeios das aves. Sabe aquela espécie de jacarandá, quase na esquina, defronte à farmácia,