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Mostrando postagens com o rótulo música

É suave a noite

Quando observavas as luzes esparsas da noite, por certo, vias estrelas tão suaves e distantes, que quase sumiam na visão etérea de nossos sentimentos. Era só nossa, como a daquela versão antiga de “Tender is the night”. “É suave a noite, a noite é de nós dois.” Sabias que o amanhecer era a fronteira entre nossos encontros, mas nossos beijos permaneceriam para sempre, em nossos lábios sedentos, mentes melancólicas e pensamentos afetuosos. Lábios que se tocavam suavemente na brisa de verão, embora tudo passasse tão rápido, desafiando o tempo. Era nossa última noite. Agora, quem sabe, nem a lembras mais. Pode ter ficado apenas em minha memória, em minha sensação, meus sentimentos. Talvez tenhas vivido outras noites, outros momentos, outros verões. “Ternuras de luar, a brisa a murmurar sua canção. Tudo tem suave encanto, quando a noite vem”. Nem percebes perdida no tempo, que as brumas da noite não são as mesmas que vivíamos, cujos encantos jamais seriam compartilhados por outros. “A n

Pandemia

Espio o mar e sinto a espuma das ondas orbitarem por meu cérebro, minha mente, meu espírito. Outras vezes, passeio por terras distantes, sentindo nos pés e na moleira o calor do sol, o fustigar do vento, o estalar do salto nas calçadas de pedra. Por momentos, o calor abrasador, quase chama, quase incêndio, nas areias escaldantes do deserto, o vento assobiando nos ouvidos, borbulhando no coração e mentes, o reluzir do brilho nos óculos escuros, a dor na fronte, a sobrancelha levantada, a falta de ar. Por momentos, estou no ar noir da Londres molhada, as correrias às avessas à procura de criminosos, o rio lamacento da noite sem lua, um corpo estirado, boca escancarada, medo na lanterna do celular. Às vezes, viajo tranquilo nos trens que seguem percursos longos, entre países, embora perceba entre seus passageiros uma certa de desconfiança de que alguma coisa está prestes a acontecer. Por vezes, ouço uma música no Spotify e meu coração se ilumina e minha mente, meu espírito

O que queria Dóris Fontaine?

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de relance. Homens sedentos por seus segredos mais íntimos, suas intenções ocultas. Nem sabiam que nada era real. Sua vida era plana como o rio que circundava a cidade. Naquela noite, na boate, alguma coisa violou seus sentidos quando o avistou, ali sentado à beira do palco, olhando-a como uma estrela. Imaginou o homem dos sonhos cujo olhar intuía em seu coração e no sexo dormente uma explosão antagônica: desejo e medo na mesma moeda. Uma fotografia que se projetava em várias dimensões. Uma bebida desfilava entre as mesas e o suor da garrafa ficava nos dedos, como sequência slow motion. Tudo parecia cinema naquela noite, embora o mundo gritasse por promessas não vindas lá de fora. Soldados que se consideravam célebres numa guerra que nem era nossa. Ele, entretanto, era civil e sua farda não passava de um corpo ilustrado por um sorriso à luz negr

Bentinho

Ele sempre chegava de mansinho. Tinha uma voz suave, expressando um tom sempre baixo e comedido e seu olhar parecia dizer muito mais do pensava. Era gordo e baixo, o cabelo grisalho e a pele morena. Trazia sempre consigo um acordeom e era incapaz de cometer qualquer impertinência ou abuso em sua permanência na casa. Certa vez, deu um barco feito à mão, um desses adornos para se colocar numa escrivaninha, ou num lugar mais reservado. Minha mãe ficara feliz com o presente e vez que outra, passava algum produto para que o mesmo permanecesse com a mesma aparência de quando ganhara. Ele chegava sempre à noite, carregado de malas, mochilas e trazia, vez que outra, algum presente, que sempre eram oriundos da alimentação, como uma rapadura de amendoim, um saboroso pão caseiro ou mesmo algum tipo de carne defumada para servir no jantar. Meu pai, cansado depois de um dia de serviço pesado, ficava um pouco incomodado com a presença, mas educado que era, não deixava esse sentimento tr

Vem, morena, vem

Vida útil, vida inglória, ingrata, insólita, insana, imbróglio de leva e traz, impaciência, intolerância, dor, inútil. Tudo isso e muito mais pra te dizer, morena, que a dor que sentes agora, já senti com muito mais força e afinco, quando me deparaste na porta, de quatro, chorando feito um bezerro desmamado. Poderias ter evitado aquilo, ser mais romântica, confiada e confiante, amada e amante, amiga e compreensiva. Só porque sou homem, que jogo futebol nos fins de semana e rebento meus meniscos, não era motivo pra me abandonares em plena quarta-feira. Em plena quarta-feira, morena, no dia que combinamos ir ao cinema, lembras do filme? Nem lembras mais, por certo. A raiva, a intolerância, o mau-humor já detonou teu cérebro, já fundiu tua mente, confundiu teus sentimentos. Era um filme daqueles de amores transbordando, derramados, de paixões ardentes, de beijos pungentes em faces rosadas, de luzes de matizes doirados em cenários pastel. Havia até musicais, morena, e é raro um homem

Criei um fake

Criei um fake Certa vez criei um fake de mim mesmo. Isso é normal, me perguntaram alguns amigos, não sei, nem mesmo sei o que realmente pode ser considerado normal. Afinal, as pessoas apresentam comportamentos distintos das normas concebidas como dentro da normalidade e tudo parece extraordinário, elegante, vanguardista, até pós-moderno (se é que isto existe). Enfim, tudo depende do contexto em que se insere a situação ou o comportamento. De todo modo, por um tempo, fui muito feliz com o meu fake, ou melhor, fui contemplado com alguns benefícios. O meu fake participava de muitas redes sociais. Era esperto, inteligente, adequado às novas tendências tecnológicas e artísticas, além de ser politicamente posicionado, e no final das contas, um grande filósofo. Mas era um fake, uma figura criada para me proteger, como uma bengala para me amparar, um personagem para dividir comigo as informações mais estrambólicas, para discutir os problemas sociais, para compartilhar as dúvidas existen

Arnildo na Mostra de Talentos da Biblioteca do HU

Houve a Mostra de Talentos da Biblioteca, no HU. Eu sugeri o seu nome e ele foi convidado. E entre talentos, havia crônicas, poesias, livros, desenhos, música. Ele então chegou devagarinho como é seu jeito, investigando de soslaio o cenário meio caótico. Além das exposições, das visitas e conversas animadas, chegara o momento musical constituído por um grupo de colegas que ousara desafiar os tímpanos e cordas vocais, num emaranhado de sons, ritmos e gêneros. Era um samba do criolo doido. Muito bom, de acordo com a euforia geral que até ensaiou uns passos de dança, nos quais, diga-se de passagem, me incluí. De todo modo, percebi a sua presença, talvez um tanto apreensiva, o que corroborou com minha percepção, pois confessara mais tarde. Afinal, no meio daquela algazarra musical, onde todos cantavam em altos brados e a plateia participava em uníssono, seria de bom tom as suas baladas mais lentas, mais reflexivas e o seu conteúdo pensante? Talvez se perguntasse, vou dar uma de Caetano V

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos. Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso. Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol. Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano. Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta. Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória. Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para es

Minha avó e a Apollo 11

Havia um clima de angústia e alguma agitação na casa. Foi no dia do casamento dos dois. Minha avó estava deitada em seu quarto. Eu tinha a impressão de que ela observava a minha mãe com um olhar de súplica e até um pouco de desconfiança. Talvez imaginasse que aquele casamento pudesse curar a sua doença, ou pelo menos, não a matasse de vez. Minha mãe, ao contrário, por mais que evitasse demonstrar, apresentava uma inquietação em cada movimento ou conversa. No fundo, ela sabia que a morte era inevitável. Apenas, desejava que a mãe não sofresse tanto! E aquela falta de ar que não passava, aquela angustiosa espera de que alguma coisa acontecesse e por um milagre, ela voltasse a conversar normalmente, a respirar com fluidez, voltar a sorrir. Minha mãe chorava pelos cantos, mas na frente dela, sorria e dava esperanças. Meu avô parecia não entender bem aquela história, mas aceitava pacificamente a ideia do casamento. Não sabia porque a filha inventara um casamento religioso, tant

As rádios locais e as tvs regionais, os sonhos e as mudanças culturais

Quando crianças, via de regra, temos um mundo interno muito rico, e um tanto dissonante com a realidade. As crianças vivem num mundo imaginário e interagem de acordo com a interpretação que estabelecem para si mesmas. Para os dias de hoje, é absurdo se pensar que alguém, até mesmo uma criança, possa imaginar que uma rádio local possa ter um elenco refinado de artistas, cantores, atores e atrizes que lá permancem para executar suas obras, fazer suas perfomances e encantar os ouvintes. Sabe-se que atualmente, tudo é gravado e a maioria dos programas vem dos grandes centros, principalmente do eixo Rio-São-Paulo onde a dramaturgia e os grandes shows musicais acontecem. Onde a música tem realmente importância comercial e os grandes artistas se salientam a partir destas “trincheiras" de arte e marketing. Por essa cultura dos grandes centros, as crianças de hoje e as pessoas em geral, sabem que a maioria dos sucessos vem de lá, que a arte regional é praticamente esquecida, com rarís