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Mostrando postagens com o rótulo filosofia

Nunca ao entardecer

Nunca ao entardecer, pensava ela, estirando-se na grama do parque. Olhava para o céu, desconfiada de que choveria. Nuvens corriam, e a impressão é que se chocariam conforme o vento aumentasse. Mas ficava ali, quase adormecida, olhando para o céu. Se pudesse, ficaria até a noite. Mas não arriscaria a vida, num capricho desses. Por certo, seria melhor levantar-se, tirar as folhas das árvores que se grudavam no jeans, olhar para os lados, desapercebida, e seguir em frente. Talvez pegar o metrô, tirar da mochila aquele livro do Sartre e ficar folheando, fingindo que lê. Há tempos faz isso. Pensa que um dia acabará a leitura, mas não acaba nunca. Sartre pensa demais. Nada aproveitável, diria sua avó. O piercing recém colocado causava certa ardência no umbigo. Dava uma leve coceira, também. Nada que fosse levá-la ao desespero. Na verdade, se desesperava por poucas coisas. Ainda bem. Afinal a vida é uma eterna turbulência. Pra que ficar se angustiando. Ouviu o barulho do metrô na est

Criei um fake

Criei um fake Certa vez criei um fake de mim mesmo. Isso é normal, me perguntaram alguns amigos, não sei, nem mesmo sei o que realmente pode ser considerado normal. Afinal, as pessoas apresentam comportamentos distintos das normas concebidas como dentro da normalidade e tudo parece extraordinário, elegante, vanguardista, até pós-moderno (se é que isto existe). Enfim, tudo depende do contexto em que se insere a situação ou o comportamento. De todo modo, por um tempo, fui muito feliz com o meu fake, ou melhor, fui contemplado com alguns benefícios. O meu fake participava de muitas redes sociais. Era esperto, inteligente, adequado às novas tendências tecnológicas e artísticas, além de ser politicamente posicionado, e no final das contas, um grande filósofo. Mas era um fake, uma figura criada para me proteger, como uma bengala para me amparar, um personagem para dividir comigo as informações mais estrambólicas, para discutir os problemas sociais, para compartilhar as dúvidas existen

A percepção da subjetividade na filosofia e na literatura

Com a Modernidade, houve gradativamente uma mudança de paradigma na literatura filosófica e em muitos aspectos da história da humanidade. Por exemplo, havia a crença de que o sentido das coisas decorria da essência do objeto. A partir de René Descartes, que contribuiu grandemente para a história das ideias, ocorre a relevância do sujeito, ou seja, o sentido passa a estar na consciência do sujeito. Essa nova maneira de pensar, este novo olhar filosófico implica em grandes transformações nas artes, nas ciências, na cultura, enfim, no novo mundo que se insurgia.   Na literatura abrangente da filosofia, pode-se dizer que num primeiro momento, no que concerne à época antiga e medieval, que todo o pensamento estava centrado no objeto. Na modernidade, há a inserção do sujeito, mais do que isso, a ascensão do sujeito dando sentido à consciência, contrariando à supremacia da essência do objeto. Finalmente, na filosofia contemporânea, afirma-se uma intersubjetividade, ou seja, a relação

A identidade subjetiva, a alteridade e as diferenças

Na obra “A escada dos fundos da filosofia", do filósofo Wilhelm Weischedel, observa-se que o autor apresenta a ideia do outro como fundamental para se chegar a uma concepção dos direitos humanos. Ao pousar o olhar no tu, no outro, o homem incorpora o pensamento de que precisa do outro para sobreviver como ser humano, adquirindo assim um contexto de pluralismo das identidades. A isso chama-se alteridade, afastar-se do pensamento antigo da subjetividade, do eu, e amparar-se à ação pessoal no outro. A concepção da filosofia ocidental sobre a identidade, a expressão subjetiva do eu, descuidado-se da importância do outro, revela uma falta de sentido, à proporção de que homem em grande parte de sua vida, depende do outro para sobreviver. Freud reiterava este desamparo radical que ocorre desde que o homem nasce, cuja sobrevida depende deste reconhecimento no outro e pelo outro. Tanto Freud, como Heidegger e outros tantos filósofos ratificam este conceito. Pela definição d

CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA

Kant, fundamentado em seu modelo do Apriorismo, afirma que todo conhecimento tem sua origem na experiência, mas não exclusivamente isso, porque a experiência somente é estabelecida através do conhecimento tácito, preliminar do homem, pelo menos no sentido mais raso do termo, destituído de qualquer investigação mais minuciosa. Na verdade, segundo ele, o conhecimento se inicia com a experiência, mas esta sentença, de certa forma é arbitrária e não prova que o conhecimento em sua plenitude se deriva exclusivamente dela. Se não vejamos, esta interpretação suscita uma série de questionamentos. É aquela velha história do ovo e da galinha. Ainda existe esta controvérsia? Afinal após a descoberta do DNA, foi comprovado que o ovo veio antes da galinha, ou melhor, a pobre da galinha não passava de um ovo. Esta seria sua primeira forma de vida. Afinal, a famigerada ave é uma espécie inglória, uma ave que não voa, não canta, tem um aspecto parvo e dorme em cima dum poleiro. Mas deixemos es

O PROFESSOR E O GOLPE

O professor de filosofia observava a pequena multidão que se aglomerava em frente à prefeitura, naquele 31 de março de 64. Percebeu que na sacada, reuniam-se muitos representantes do partido trabalhista. Caixas de som ligadas, microfone instalado e discursos inflamados se seguiam. Havia um burburinho grande e vários carros estacionados próximos à praça. Um dos motoristas ouvia atento, a rádio nacional. As ondas curtas vinham e iam, produzindo ruídos na compreensão das notícias. O professor afastou-se de um grupo mais animado e aproximou-se do motorista que ouvia rádio, percebendo a dificuldade com que tentava assimilar o que ouvia. Mesmo assim, tentou saber se o que tinha apreendido das conversas itinerantes tinham algum fundamento. Conversaram alguns minutos. O assunto não podia ser outro. Brasília estava em pé de guerra e as notícias assinalavam que João Goulart seria deposto. Um dos políticos falava no microfone a altos brados. Parecia antecipar-se aos acontecimentos. O p