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A pedra

Ao terminar de fazer as compras da feira, Maria Emília voltou para casa. Não tinha outra alternativa a não ser tomar o ônibus superlotado porque já era horário de meio-dia. Com dificuldade, passou a roleta e desviando-se de um e de outro, foi até o fundo do ônibus, já que a sua parada era bem distante. Com sorte, conseguiu um lugar, espremida entre as sacolas de compras e uma caixa trazida por um homem ao lado, além de outras pessoas que se equilibravam em pé, ocultando-lhe a frente, sem poder ver por onde o ônibus seguia. Na verdade, não precisava. Conhecia aquela rota como a palma de sua mão. Um suor forte empapava o rosto e o pescoço. Sentia uma certa vontade de urinar, mas esta necessidade não era adequada para aquele momento. Tinha que esforçar-se em pensar em alguma coisa bem diferente para a vontade não apertar ainda mais. As pessoas se acotovelavam e tentavam se mover de um lado para o outro, tentando adequar-se ao ambiente sufocante. Uma das sacolas, com aquele atropelo

A esquina iluminada

Fabrício desceu os vinte e cinco andares do prédio, tateando pela luz fraca do celular. Ainda bem que não tomara o elevador, pensara, ainda aturdido pela queda de luz. Dirigiu-se ao carro e em seguida afastou-se, passando pela portaria e cumprimentou com um meio sorriso os dois funcionários, que pareciam olhá-lo surpresos. Já chegando à rua, ouviu um “oh” festivo pelo retorno da iluminação. A noite se antecipava e ele continuava no bairro tão próximo ao de sua infância, olhando pelo retrovisor do carro, como se a qualquer momento um personagem desavisado voltasse para o cenário antigo. Coração atribulado. Desceu do veículo e caminhou rápido, atravessando ruas, dobrando esquinas, sentindo o frio produzido pelo sereno que molhava do paletó aos cabelos. Em seguida, deparou-se com um bar muito parecido com o de seu pai. O frontispício com aquelas ramadas sobre a porta de duas abas, expressando o tempo passado. Havia música ruidosa anunciada por um apresentador, espécie de show

O painel do voo

Não sabia o que fazer. Lambuzava-se com a salada. Um olhar no celular, outro no painel do voo.   Não sabe por quanto tempo ficou ali, parado, meio perdido, preocupado em mudar a situação. Seu terno era surrado e as meias balançavam nos tornozelos. Andara muito.   A cidade plana e quente e seca. Brasília era assim. Incomodava. Incomodava a beleza e a feiura da imensidão.  Doía-lhe as costas. Esticou-se, pediu um café. Voltou a sentar-se no banco alto do bar.   Pessoas passavam com suas malas gigantescas. Tinha a impressão que levavam o mundo. Foi só uma impressão, pois seus pensamentos voltaram a voar para o problema. Olhou para o alto, esfregou os pulsos. Sentiu um leve calafrio, como um desandar da pressão, um mal-estar da comida, um temor de altura.   O café apareceu na mesa através de uma mão branca, um meio sorriso, um afastar-se rápido na direção oposta. Quis dizer qualquer coisa: um obrigado, talvez. Não pode. A moça sumiu como desapareceu de sua imagem o que re

O detetive e a cerveja alemã

Samuel Smart era o nome dele. Dizia-se detetive particular e tinha tanto sigilo, que temia que o chamassem de detetive. Certa vez, estávamos num bar tomando umas cervejas e o chamamos, mas ele nem nos olhou. Ficamos nos perguntando o que estava acontecendo , eu e outro amigo que comemorávamos qualquer coisa, como o início do verão, ou apenas o simples motivo de nos reunirmos. Afinal, Samuel Smart era nosso conhecido há muito tempo, não que tivéssemos uma amizade mais próxima com ele, mas a intimidade se dava devido à pequena distância de seu escritório como o nosso trabalho. Às vezes, o encontrávamos ali mesmo, no bar, com uma história capciosa, mas aquele dia, especialmente ele nao queria a nossa presença. Tempo depois, voltou assoberbado e até ofegante, passando por nós e evitando conversa. Não deu outra: resolvemos tirar a limpo o que estava acontecendo. Levantamos da mesa e fomos ao seu encontro. Samuel disfarçava, olhava enviesado para os lados, procurando não dar na vista

A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XXIII

Clara não evitou as lágrimas, envolvida naquela situação que aos poucos se apoderava de sua vida, de uma maneira tão íntima, que lhe custava distinguir a sua história da de Dona Luisa. As suas vidas confundiam-se de tal forma, que imaginava ser a mesma história e que apenas os acontecimentos se sucediam em épocas diferentes. Talvez ela nem fosse Clara, mas a própria Luisa. Não bastasse aquele clandestino na sua casa e as peripécias que precisara enfrentar para acolhê-lo, agora as dificuldades se acumulavam, talvez conduzindo a um desfecho semelhante. Não sabia que rumo as coisas tomariam, mas devia esforçar-se para resgatar o verdadeiro amor, a felicidade que Dona Luisa tanto almejara. Por este motivo, faria tudo para encontrar a casa na praia. Pensando assim, vestiu-se com uma roupa leve, quase esportiva para pôr em prática o seu objetivo. Guardou os óculos de grau na bolsa, aplicou as lentes e maquiou-se como de hábito. Pegou também uma pequena valise e de óculos escuros, dirigiu-s

A fotografia da vida de Santa - CAP. 19

Capítulo 19 No carro, faz-se um silêncio pesado. Parece que nenhum dos dois sabe o que dizer. Fernando porém ensaia alguns temas como o próprio trabalho, o tempo em que ficou desempregado e a proposta da tia para trabalhar na casa de Santa. Alfredo parece entediado. Não lhe interessa aquele assunto, muito menos falar sobre a vida profissional de Fernando. Fernando conclui, satisfeito: — Parece que somos amigos há muito tempo. Engraçado, quando há empatia, o assunto flui, não é mesmo? Na verdade, não era o que estava acontecendo entre os dois, mas Alfredo concorda. Por fim, pergunta: — Não acha que devemos parar num bar? Como lhe disse, seria bom conversarmos com mais calma. Fernando sorri, confiante. Em pouco tempo, estão num bar, tomando uma cerveja. — Então, me diga, o que é que você queria me dizer? — Não sei, Fernando. É que sou um homem muito solitário. — Mas nós não somos amigos. Sou apenas o jardineiro de sua mãe. — Há pouco tempo, você disse

A margem oposta

Fonte da ilustração: fotografia do facebook do escritor e poeta Wilson da Rosa Fonseca Passei a viver assim taciturno, caminhando sozinho pelas vielas escuras como um vampiro à cata de sangue. Bobagem, a única coisa que talvez nos unisse é a terrível solidão. Tão sozinho como este casaco estirado na poltrona, esperando que sacudisse o pó e o levasse comigo. Este frio que me atazanava, que me doía as carnes, que me comprimia os ossos e me deixava zonzo. Melhor seria não sair de casa, não enfrentar o vento que fustiga o rosto, que me arde os olhos, que resseca a boca, resfria a alma. Melhor ficar em casa tomando caldo verde ou chocolate quente. Melhor esconder-me entre as cobertas macias e ocultar-me do mundo. Mas precisava ultrapassar as barreiras de meus medos e dar vazão à solidão que me assolava e me deixava assim, desconsolado. Se ao menos pudesse cometer delito, qualquer delito, mesmo insosso e insano, sem consequência. Qualquer coisa maluca, que não falta grave, mas que

Os pecados de Xavier

Se ocorresse nos dias atuais, do politicamente correto e do convervadorismo tacanho, por certo Xavier seria taxado de, no mínimo, irresponsável. Lá pelos anos 80, não havia tanta integração entre as pessoas, afinal, não havia internet, muito menos redes sociais. Quem se conhecia, o máximo que gravitava entre os bate-papos era o que se contava à amiúde. As fofocas do alto escalão se deixava às revistas especializadas. Xavier era um cara divertido, no alto de seus quarenta e poucos, com mulher e filho, tinha alguns interesses que desapontavam os amigos mais chegados, mas produzia certa curiosidade em se descobrir os meandros em que os interesses se realizavam. Ele não costumava falar, mas quando encontrava um amigo, exagerava nos detalhes, nos momentos mais impetuosos, aguçando a lascividade intrínsica do ser humano. Ninguém sabia ao certo o que fazia, como eram as suas noites de diversão, principalmente nos fins de semana. Ele, via de regra, voltava ao trabalho numa penúria de

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 14º CAPÍTULO

No capítulo 13, Júlio refletia sobre a personalidade de Rosa, que em poucos dias, conhecera como uma mulher com traços distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento.Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que ingetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. A partir de agora, publicamos o capítulo 14 de nosso folhetim policial. Capítulo 14 Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bar-bebidas-álcool-geladeira-926256/ Ricardo dirigia-se ao

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I I

HOJE QUINTA-FEIRA, 14 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O TERCEIRO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS. Capítulo 3 Agora que Dulcina foi embora, sinto-me mais à vontade para viver a minha vida. Ela jamais me entenderá, como você. Tem a cabeça fraca, desorientada. Quase uma boçal. Agora, posso observar a escuridão das ruas, as luzes ao longe, o vaivém de lâmpadas que se acendem nas escadas dos edifícios, quando alguém acaba de entrar nos prédios. Em alguns, quase participo de suas vidas. Vejo-os entrar, deslocarem-se para seus quartos, seus locais de trabalho ou lazer. Um menino passa metade da noite na frente da tela do computador. A mulher do prédio da esquina se acomoda numa poltrona que quase desaparece, hipnotizada pela tv. Cada um faz uma atividade que lhe faz bem, que lhe proporciona prazer. Eu cá, fico na minha janela. Daqui vejo o mundo, do qual não posso partilhar. O velho aí da frente, ainda não se deitou. Já devia t

O DOCE BORDADO AZUL - CAPÍTULOS 6º E 7º (em sequência)

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir apresentaremos dois capítulos, o 6º e o 7º capítulo. Capítulo VI O telefonema Lúcia acordou de madrugada, envolta em pesadelos estranhos, misturando imagens do dia, a visita de Madalena, o enterro de Irmã Dolores, a carta, a mãe na cirurgia, o cheiro de hospital, numa mistura de comida e medicamento. O coração pulsava descompassado e ela desconfiava que mais dia menos dia, ele lhe prepararia uma surpresa, tal era o desregramento de sua batida. Levantou, meio tonta, talvez pelos comprimidos de tarja preta ou pelo susto dos pesadelos. Afastou-se do quarto, dirigindo-se à cozinha e dando na passagem, uma espiada para a rua. Sentia frio e medo. Medo de ser assaltada, naquela casa, solitária, como estava, sem a presença da mãe. Se ao menos pudesse falar com os vizinhos, mas os muros eram tão altos e as janelas cheias de grades e ferrolhos imensos, jamais abertas. Ainda