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Mostrando postagens com o rótulo óculos

Uma saída para o nunca

Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes. Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados. Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite. Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória. Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia. Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia. Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele esta

Sabrina

Sabrina desligou a tv analógica e ouviu ainda um ruído, que demorava a sumir. Talvez a tv estivesse úmida, pensou. Sempre que acontece uma chuva forte, tudo fica meio atrapalhado. Houve dias em que até o liquidificador parou de funcionar. Quando compraria uma tv digital? Era coisa que não podia pensar, neste momento. Os meninos na escola, indo a pé, caminhando mais de 5 km e ela preocupada com a televisão. Mas deixa pra lá, melhor procurar os tais panos de prato, que passou o dia atabalhoada e os perdeu. Sabe que os guardou, tem certeza, mas onde estarão? Precisava sair antes que os meninos voltassem para vendê-los no armazém de Seu Oliveira. Lá costumava deixá-los até que alguém os comprasse. Às vezes, ninguém adquiria nada, mas na feira sempre dava certo. Na feira era venda segura. Ou na igreja, mas na igreja não gostava de vender não. O padre pedia silêncio, porque o mulherio fazia um burburinho na porta da igreja até começar a missa. Ele andou proibindo que ela vendesse,

A ARANHA

A crônica "A aranha" está na antologia "Outras águas" e foi vencedora na categoria, juntamente com a crônica "A palestra" publicada neste blog. Fonte da ilustração: Westermann, Johannes do site https://pixabay.com/pt/users/Westi2605-2708584/ Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava. Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência. Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado. Mergulhei a mão,

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito. Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara. Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamen