(Do livro Anti-heróis que reúne contos selecionados para o II Concurso Literário da Metamorfose Cursos. Enfoca o anti-herói e enceta um diálogo importante com a tradição literária, mas sem perder de vista a contemporaneidade.)
Quando Ramiro desceu do ônibus, percebeu uma certa bruma
que há muito não via na cidade. Era como se o inverno
rapidamente avançasse e a umidade tomasse conta das
casas desprotegidas. Mas o outono ainda estava no berço e
pouco mais de calor preservava as suas costas suadas e seu
olhar abalroado pela dúvida. Dirigiu-se ao cais e a neblina
aumentava, como naqueles filmes de Stephen King, nos quais
sempre havia uma atmosfera estranha para qualquer época do
ano. Sentou-se à beira do cais, quase desconhecendo a cidade
do outro lado do canal. Pouco a via, a não ser as torres da
matriz, a única parte que ficava a descoberto da neblina. Devia
ser um aviso para seus pecados. Uma ameaça, talvez.
Mesmo assim, ele desenrolou um cigarro de maconha lentamente,
afinal, naquela bruma toda, nem o veriam. Fumou de
morado por longos e infinitos minutos. Depois olhou a nuvem
que fazia com sua própria fumaça e sorriu. Estava colaborando
para o caos.
Ficou ali, não sabe quanto tempo, pensando na mulher que
ficara em casa, nas contas que deixara sobre a mesa, nos boletos,
nos cartões de crédito, no financiamento da casa. Mas
aos poucos, foi esquecendo-os tal como a neblina que avançava
mais e mais. O céu se juntava no canal, numa coisa só, indefi-
nida. Os barcos sumiam, quanto mais os navios, que passavam
bem mais longe. Parece que o caos aumentava e não via ninguém
a sua volta. A maconha o deixava leve, cabeça encostada
num poste, as pernas no gelado do cais. O mundo, para ele, riscava
num fósforo de churrasco, que se acendia e apagava, numa
chama tépida e sem graça. A vida dava ré e ele regurgitava
em raiva, das coisas que não lhe pertenciam ou que lhe tinham
tirado: o direito à moradia decente, à liberdade de andar na
rua sem ser assaltado, ao término da faculdade pela falta de
dinheiro, o tempo perdido num trabalho monótono.
Uma menina com a roupa enxovalhada se aproximou e ficou
observando-o, ali, sentado, como se avistasse o Buda ou uma
alma iluminada. A mãe estaqueou um pouco distante. Sentiu
uma lágrima correr na face encardida do sol. Deixou que se
aproximasse, deu-lhe todos os trocados que possuía. Mais do
que isso, a beijou no rosto. A mãe do outro lado, se aproximou
assustada pelo afeto inadequado. Não importava, ele amava as
crianças e odiava a situação nefasta em que o mundo tinha se
transformado pelos políticos e ilegítimas autoridades.
Elas se foram e de longe observou as duas sombras comprarem
o que supunha ser um lanche. Suspirou aliviado. A noite e
o nevoeiro compartilhavam o tempo e a intensidade. O silêncio
ficou quase absoluto. Nada, nem ninguém por perto. Só o som
ritmado das fracas ondas da lagoa e o ruído de um carro distante
do outro lado da biblioteca pública.
A não ser Bruno, seu amigo de infância que se aproximava,
talvez o único vivente àquela hora e com a tal neblina, sentiu
uma espécie de epifania, uma alegria de algo que se revelava e
restaurava a sua criatividade. Com ele, poderia utilizar toda
a produção elaborada de se fazer entender a qualquer preço.
Bruno era burro, um imbecil, na verdade, mas ele estava ali, ao
seu lado e por certo, ficaria um bom tempo.
Lembrou por um
segundo da mulher, das contas, do cartão de crédito, até da
lista torpe do supermercado e sentiu uma fisgada no peito. Via
o rosário sobre a bíblia e a mulher se ajoelhando como uma
beata. Podia ter acabado com tudo, naquele momento, mas o
ônibus não esperava e ele tinha de ir ao encalço dos seus limites.
Bruno chegou, fez aquele gesto característico de quem imita
os negros americanos, batendo com as mãos e dando uma sacudidinha
no corpo, cheio de promessas para si mesmo, pensando
que os demais compartilhavam os seus trejeitos ultrapassados.
Em seguida, sentou-se ao seu lado e perguntou:
– E aí, tu deixou a vaca?
Bruno parecia seu pai. O velho era grosseiro, como ele,
tanto que não sabia argumentar e por isso, batia muito. Não
somente nele, mas na mãe, na irmã, na família toda. E se drogava,
o desgraçado.
Ramiro sempre comparava o amigo ao pai. Ele tinha dessas
coisas, de falar o que não devia nas horas inadequadas.
Depois de muitas tragadas, muitas histórias sem sentido, a
euforia os auxiliava a transpor os limites do bom senso.
Em dado momento, Ramiro começou a caminhar sobre o
cais, muito perto da lagoa. A noite se enfeitava de pontos
amarelos dos postes e a neblina camuflava algum barco que se
aproximava.
Numa dessas loucuras, entre risos desenfreados e questões
não respondidas, Ramiro resbalou o tênis velho e caiu na água.
No início, Bruno deu boas risadas, vendo o amigo mergulhar,
desaparecer e vir à tona. Em seguida, viu-o afastar-se em direção
às ilhas, talvez em virtude da escuridão que aumentava,
apesar de ser exímio nadador. Com esforço, utilizava toda a
resistência para praticar a volta ao cais, mas cada vez mais
se afastava da cidade.
Bruno, então, apesar de demorar a entender
que ele perdera a direção, percebeu que o amigo estava
em perigo.
Decidiu atirar-se ao mar, embora nadasse como um
prego. Apesar do frio, retirou a camisa e os sapatos para ficar
mais leve. Deu algumas braçadas, tomando água, esforçando-se
para chegar até o outro, gritando para que o esperasse, que
voltasse e não se dispersasse rumo às ilhas, pois se afastaria
cada vez mais do cais.
Ramiro, entretanto não o ouvia e se intrigava ao ver o companheiro
superar-se, na tentativa de salvá-lo. O que esperava
ele, transformar-se num herói, ele que nunca soubera tomar
um banho com água acima da cintura. Seu amigo era mesmo
um idiota, mesmo porque as ondas pareciam se tornar mais
fortes e intensas.
Mas Bruno não desistia, segurava-se num barco não muito
distante do cais, descansava alguns minutos para tomar fôlego
e o chamava desesperado. A bruma era densa.
Ramiro ria, sem perceber que se afastava, guiando-se apenas
pelas luzes da cidadezinha que ficava na outra margem.
Também estava cansado e por isso, apoiou-se numa boia, escondendo-se do amigo e rindo de sua odisseia.
Bruno, entretanto, insistia na labuta de encontrá-lo, e por isso, nadava de
qualquer jeito ou da melhor maneira que conseguisse chegar
até ele. Sentia perder as forças e a exaustão o deixava apavora-
do, mas num ímpeto de sobrevivência, avançava em piruetas,
alcançando uma poita e prendendo-se numa rede clandestina.
Tentava desvencilhar-se, enquanto gritava por Ramiro, que
apático, observava o movimento nebuloso.
Um suor escorria pelo corpo de Bruno, que num ato de
desespero, retirara os pés presos no entrelaçado, ferindo-se a
brotar sangue. Finalmente, conseguiu dar um impulso, aproximando-se em seguida de Ramiro, resfolegando, a ponto de não
conseguir falar. Por fim, tentou acender o isqueiro que trazia
no bolso das calças, mas suas mãos tremiam e ele perdera o
equilíbrio, quase afundando. Ramiro pegou o isqueiro e o acendeu, enquanto Bruno, assustado, o alertava da direção errada,
ao mesmo tempo que o segurava com firmeza, tentando levá-lo
para a margem.
Ramiro obedeceu e seus olhos brilhavam como
se um caos se estabelecesse em definitivo. Sorriu para o amigo,
e em vez de segui-lo, ele é quem o conduziu com facilidade, e
os dois dirigiram-se ao cais, obedecendo a chama precária do
isqueiro.
Bruno queria dizer alguma coisa, mas não evitava a
água que quase o afogava. Ramiro desabonava a estupidez do
amigo, apenas obedecia a chama, em silêncio.
Juntos chegaram próximos ao cais, mas Ramiro o impediu
de aproximar-se e segurar-se num ancoradouro. Bruno surpreendeu-se e quase em pânico, perguntou:
– O que aconteceu? Me deixa segurar, tenho que sair daqui.
Ramiro entretanto, enlaçou o seu pescoço com carinho e o
mergulhou com firmeza. Bruno sentiu-se desfalecer e emergiu
desesperado, quando a mão forte de Ramiro o libertara.
– Por que fez isso? Me larga, pelo amor de Deus! Eu não
sei nadar, tu sabe!
Ramiro o olhava com certa ternura e o abraçava novamente, impedindo-o que se apoiasse no cais. Respondeu com tom
afável :
– Nao posso te largar. Tenho que te matar.
– Por que? Eu fui te salvar, não fui? Por que então?
– Porque é de minha natureza. Tal como o escorpião da
fábula, não posso. Eu preciso. Todos que se atravessam no meu
caminho, na minha vida, todos que dão palpites, que me dão
conselhos, todos... eu tenho que matar, entendes?
Ao terminar de falar, empurrou-o novamente para o fundo
da lagoa. Viu o olhar do amigo num desespero quase poético,
desaparecer sob as águas. Quando tentava emergir, ele o impeliu mais uma vez. Esperou um pouco. Alguns segundos apenas
e desta vez, ele não voltara mais.
Ramiro suspirou fundo. Sorriu e esperou. O corpo viria à
tona e ele o abraçaria com ternura. Sabia que tivera compaixão, quase amor.
A neblina aos poucos se dissipava.
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