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A bandeira e o eclipse

Minha mãe era muito zelosa com as atribuições da escola. Na primavera de 66, estávamos mais preocupados com o provável eclipse que ocorreria no Brasil, especialmente na região sul, do que outros eventos cotidianos, como por exemplo confecionar bandeiras brasileiras.

Eu já tinha tudo pronto em minha mente, usaria uma chapa de raios x para observar o céu, até que o sol desparecesse e a terra se alinhasse com a lua, escurecendo a cidade.

No balneário Cassino, no entanto, a situação seria ainda mais eufórica e esperada. Afinal, a Nasa lançaria 14 foguetes na praia com a intenção de investigar o fenômeno. Havia muita gente no Cassino, inclusive mais de 300 cientistas do exterior.

Minha mãe, entretanto estava disposta a cumprir a sua tarefa. Levou-me à loja Isaac Woolf e com a paciência das mulheres em escolher tons para os tecidos, permanecemos na loja mais de uma hora. Eram matizes que não acabavam mais. Tons que iam do verde escuro ao mais claro, azul que deveria compor um céu infinito e inatingível, o amarelo que se desmanchava entre o dourado e a gema de ovo, ou outro tom qualquer que somente ela sabia distinguir. Quando finalmente decidiu, a noite já dava sinais de vestir a cidade com sombras. Eu só pensava no eclipse do próximo dia. Ela com as bandeirolas que a professora a incubira para o passeio dos alunos até à praia, para assistir aos dois eventos e mostrar a nossa brasilidade e força nacionalista.

Em casa, com paciência redobrada e após muitos cálculos sobre as escalas, ela desenrolou os tecidos sobre a mesa e pediu que eu a ajudasse a organizar as peças, de acordo com as cores respectivas. Enquanto eu obedecia, ela investia nas figuras geométricas, associando as cores aos desenhos, desde o verde para o retângulo, o amarelo para o losango, além das estrelas representativas dos vários estados. Por fim, tentava transmitir a sua impressão sobre as bandeiras, prosseguindo enfática:

Sei o quanto o eclipse impressiona, sei do poder flamejante dos foguetes que voarão aos céus, que transformarão os olhos e mentes em memórias jamais esquecidas. Mas estas memórias devem ser acompanhadas pela nossa cidadania, a nossa percepção de nação e isso só acontece, se tivermos um símbolo, um emblema, que nos identifique como nação, que represente o nosso povo e nosso solo, enfim a natureza, além da paz que deve ser prepoderante entre os povos.

Já ouvindo a história que parecia não terminar, concordei que a professora tinha razão em querer confeccionar as 24 bandeiras para a nossa turma que saudariam o eclipse e os foguetes.

Ela retificou: mais do que saudar, vai mostrar a todos, a presença do Brasil neste evento e mais do que nunca o nosso símbolo maior será a representação absoluta.

Naquele momento, já me interessava em levar a bandeira, agitada e altiva, junto com os colegas de classe, convicto que fazia parte do grande evento. Só despertei de meus pensamentos, quando ouvi o barulho metálico da máquina de costura, aprumada em desvendar caminhos que levassem à perfeição.

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