Fabrício desceu os vinte e cinco andares do prédio, tateando pela luz fraca do celular. Ainda bem que não tomara o elevador, pensara, ainda aturdido pela queda de luz. Dirigiu-se ao carro e em seguida afastou-se, passando pela portaria e cumprimentou com um meio sorriso os dois funcionários, que pareciam olhá-lo surpresos. Já chegando à rua, ouviu um “oh” festivo pelo retorno da iluminação.
A noite se antecipava e ele continuava no bairro tão próximo ao de sua infância, olhando pelo retrovisor do carro, como se a qualquer momento um personagem desavisado voltasse para o cenário antigo.
Coração atribulado. Desceu do veículo e caminhou rápido, atravessando ruas, dobrando esquinas, sentindo o frio produzido pelo sereno que molhava do paletó aos cabelos.
Em seguida, deparou-se com um bar muito parecido com o de seu pai. O frontispício com aquelas ramadas sobre a porta de duas abas, expressando o tempo passado. Havia música ruidosa anunciada por um apresentador, espécie de show improvisado.
Entrou e encostou-se no balcão, acomodando-me entre meia dúzia de homens que se acotovelavam, bebendo e conversando em brados, misturando as vozes com a música que uma cantora se esforçava em dividir com o som e as imagens do futebol na TV. Algumas mesas faziam um círculo com pessoas entusiasmadas que aplaudiam, semelhante a uma plateia de teatro de arena. É provável que fossem amigos ou parentes da cantora magrela, que produzia uma perfomance estranha, vestida de couro em preto, da cabeça aos pés, olhos fundos, salientados por traços escuros, contrastando com uma franja lilás.
Fabrício nem percebera que o atendente perguntara pela décima vez, talvez, o que pretendia beber.
— Cigarros. Pode ser desse azul, aí. – Apontou para o mostrador na parede.
— Só isso?
— Só isso não… – O outro afastou-se para servir o cliente mais à direita, mas insistiu que nem queria cigarros, mas sim uma cerveja.
Fabrício percebeu que o atendente transferira o seu pedido ao garçom magro e de cabeça pelada, que se espalhava entre as mesas. Irritado por ter sido preterido, indagou por que não lhe atendera. Justifiquei a sua indignação, dizendo que teria de esperar que o outro, que estava no lado oposto do bar, viesse até ali e lhe trouxesse uma cerveja.
Alguns homens que estavam ao seu lado voltaram-se para ele, mas logo o esqueceram. Também o caixa fingia não ouvir. O mundo parecia eliminá-lo do cenário.
Antes que o garçom se aproximasse com a cerveja, voltou ao assunto, pedindo esclarecimentos ao homem:
— Não seria melhor teres me atendido? Tiraste o outro da atividade dele.
Ele coçou a cabeça irritado, enquanto o garçom sorriu por um minuto e logo se afastou em direção ao grupo que pedia outras bebidas. Ficou encarando o balconista com raiva estudada.
O vendedor respondeu, sem voltar-se para ele, como se o seu foco fosse alguma coisa abstrata. Enxugava as mãos num guardanapo cinza, que devia ter sido branco e assentava os cotovelos no balcão. Os braços eram fortes, com veias salientes e estranhas tatuagens.
— Olha aqui, meu amigo. Não to aqui pra dar trela. Tu já foi atendido, desencana.
Fabrício percebeu o jeito displicente, o cabelo empapado em gordura, o bigode grisalho mal afeitado. Talvez por isso, decidira levar a discussão adiante. Respondeu que ele estava ali para dar trela sim, usando as suas palavras. Afinal ser atencioso e eficiente devia ser uma regra de boa convivência, pois o bar era um ambiente público, no qual o cliente deveria ter prioridade absoluta.
O outro respondeu já na outra extremidade do balcão, atendendo na caixa:
— Meu amigo, não tenho tempo pra discutir isso tudo que tu falou aí, do teu manual. – Terminou a frase rindo com ironia, piscando para o freguês a quem dava o troco, que também sorria.
Um ódio se insurgiu nos sentimentos de Fabrício e por um instante, imaginou o pai na figura daquele homem, extrapolando as suas funções e dando lições de moral. Foi neste momento, que gritou:
— Para coçar o saco, enquanto oferece um salgado, tu não te importas! Nem ao menos, pegas um garfo, um guardanapo de papel. Estás sempre pendurado neste pano de pratos sujo em cima do balcão. Eu poderia chamar a vigilância sanitária e fechar esta espelunca.
— Tu é da fiscalização? Se não é, vaza! Não me enche o saco!
— Sim, como todo cidadão.
Um dos que estavam ao seu lado, um homem franzino e de pescoço comprido, se pronunciou agressivo, mandando-o calar a boca. Não pensou duas vezes e o acusou de ser um alienado.
— Não te mete, seu garnizé. Se tu és daqueles indivíduos que aceitam tudo sem reclamar, o problema é teu.
— Tu tá criando caso, só isso. Já foi atendido, não foi? Então fecha a matraca, que a gente quer assistir o jogo – disparou com fúria solidária ao companheiro, um outro de corpo avantajado e camisa regatas.
Fabrício sentia náusea do suor que brilhava na axila peluda. Afastou-se um pouco dos braços enlaçados do balcão e resmungou "um bando de idiotas!".
Pegou a cerveja que lhe foi empurrada da caixa e e dirigiu-se a uma mesa próxima ao palco improvisado, no qual a cantora, neste momento encerrava a apresentação.
Em seguida, o rapaz de cabeça pelada limpou a mesa e antes que se afastasse, ele agradeceu e ficou em silêncio.
Bebeu o primeiro gole e a bebida escorria amarga. Entornou um copo atrás do outro até acabar o conteúdo. Havia uma necessidade de terminar e pedir outra cerveja. Desta vez, o garçom foi rápido. Continuou no mesmo processo, embora agora, sentisse uma certa euforia na bebida. Olhava enviesado para os habitués, que a esta altura, o haviam esquecido , fascinados que estavam pelo futebol.
Os ruídos se aceleravam, além do som da TV, como se fosse um final de festa, sem a música, apenas os ruídos remanescentes.
Ao terminar, Fabrício levantou-se da mesa, empurrando-a e riscando os seus pés de metal no piso.
Ato contínuo, aproximou-se da caixa, onde estava o pivô da discussão, agora tranquilo, apenas assistindo o jogo. Chegou bem perto para chamar-lhe a atenção, gritando para que todos ouvissem:
— Um dia, tu vais aprender a tratar bem as pessoas.
O atendente voltou-se surpreso e muito assustado, porque Fabrício apontou uma arma em sua direção.
Os demais se afastaram correndo do balcão, produzindo uma clareira no centro do bar.
Apenas ele e o balconista se enfrentavam.
Algumas mulheres gritavam em pânico.
O rapaz da cabeça pelada escondia-se num nicho de uma porta que certamente existira no passado, atrás de uma cortina ensebada.
Fabrício percebera que o homem da caixa estremecia e falava com uma voz gutural, esforçando-se em me pedir cuidado.
— Calma com este troço aí, amigo, isso não é brinquedo.
Não lhe deu ouvidos, ao contrário, engatilhou com a mão firme e respondeu com fúria:
— Não me chama de amigo, seu palhaço. Eu não sou teu amigo!
O outro fez um anteparo com as mãos espalmadas em sua direção, apavorado.
— Está bem, mas por favor, vai embora. Que pensa que tu vai fazer, pelo amor de Deus!
Ele começou a rir, sempre apontando a arma para ele.
— Agora estás te cagando de medo, seu covarde! Cuidado, vais te borrar nas calças – e voltou-se para a plateia silenciosa – vejam pessoal, o valentão está se borrando de medo!
Virou-se num segundo para o balconista e o viu abaixar-se atrás do balcão, com os olhos arregalados, suplicando por sua vida.
Não podia atendê-lo, significava muito a sua liberdade, por isso, o atingiu.
Um estampido somente. Um breve instante e uma risca de sangue pela boca, o pulmão perfurado. Rápido, fulminante, certeiro. A morte atrás do balcão. Mais um idiota intolerante fora eliminado.
O garçom de cabelo muito curto trazia outra cerveja e comentava alguma coisa, mas não o ouvia. Ficou parado, pensativo, tentando adivinhar o que estava fazendo ali. Entretanto, segurou a garrafa com parcimônia, agradeceu e deixei-a sobre o balcão de pedra.
Quando voltou a vê-lo, ele já estava do outro lado, servindo as mesas restantes.
Olhou para o caixa que parecia esforçar-se em manter-se alheio. De vez enquanto, arriscava por debaixo dos olhos para os fregueses e acenava a cabeça, entediado com as conversas e as beberagens. Quando respondia alguma pergunta, nunca encarava as pessoas e quase sempre entregava as tarefas ao garçom, mesmo que este estivesse perdido entre outras mesas.
Examinou o seu olhar miúdo, um tanto ausente. Devia ser o dono daquela espelunca, pois demonstrava muito zelo pelas contas.
O atendimento deveria ser mais amistoso e pessoal, pensou. Entretanto, não reagiu, não tomou qualquer atitude que expressasse o seu descontentamento.
Se tivesse uma arma naquele momento, teria atirado naquele imbecil ou talvez apenas avistasse pela janela a esquina toda iluminada e decidisse seguir em frente.
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