“Estava muito tensa nos últimos dias da gravidez. Meu pai arranjara um emprego para Júlio, no banco. Não era nada muito importante, mas preenchia as suas horas de solidão. Ele parecia sempre distante de nós, ensimesmado, sempre pensando no que lhe acontecera. Não se habituava à situação, como se a experiência o deixasse diferente do que era, hoje, um homem amargo e triste. Minha mãe às vezes, pensava tratar-se de Saymon ou outro clandestino que eu acolhera em casa. Deixara praticamente a lida da casa ao meu encargo. Tínhamos uma empregada, que nos ajudava, cuja presença me tirava um pouco da solidão.
Infelizmente, naquele dia, não havia ninguém em casa, a não ser minha mãe e eu. Não tive a quem recorrer, a não ser a ela, que demonstrava um interesse inusitado por minha situação, o que produzia em mim um certo temor. Nunca esquecera a sua atitude, quando denunciara Saymon.”
Moema ouviu os gemidos de Luisa. Sabia que as dores do parto não tardariam. Também as dores da alma eram terríveis, pensou. Ficou imóvel, à espreita. Da escada do porão, aguçava o ouvido e a mente. Os olhos perscrutavam em volta, como se tentasse achar uma saída. Em seguida, os gritos da filha, chamando-a. Então subiu lentamente a escada e na cozinha, destampou com cuidado a jarra, derramando a água fresca no copo, enchendo-o, observando a água embeber a toalha branca, mas tingindo-se de vermelho, como sangue, sujando-lhe as mãos e atingindo o corpo.
Mais um grito, mais um chamado. Então Moema empurrou o copo, atirando-o ao chão, estilhaçando nos ladrilhos.
O cenário mudou repentinamente. O sangue desapareceu, a luz invadiu pelas frestas e ela respirou, aliviada. Arrumou o cabelo, empurrando-o com os dedos para trás. Ergueu a cabeça e aproximou-se do fogão, pondo a água a aquecer. Depois disso, foi ao encontro da filha.
Luisa caminhava com dificuldade, segurando a barriga, como se protegesse o filho. Pediu que a mãe ligasse para o Doutor Osvaldo.
Moema aproximou-se, amistosa, colocando delicada, a mão na barriga.
— Não se preocupe. Quando a hora chega, tudo acontece.
— Eu sei, sei que está na hora. Por favor, mamãe.
— Mas eu já liguei para o Doutor Osvaldo. Você viu como está o tempo? Está com cara de chuva; não deve vir. Um homem na idade dele, não deve se arriscar.
Luisa afastou-se, assustada.
— Não é possível, então precisamos chamar o papai ou o Júlio.
— Eu estou aqui. Sou sua mãe.
— Não, não quero. Você vai matar o meu filho! Você nunca quis esta criança!
Moema afastou-se, sorrateira, fechando a porta do quarto atrás de si.
Clara tentou correr até ela, mas não teve tempo. Bateu desesperada, pedindo socorro. Suplicava que ela abrisse, em desespero.
Moema sorria, acenando a cabeça em tom de censura. Voltou para a cozinha e preparou um chá. Sentou-se à mesa, abriu um vidro de biscoitos e ficou ali, contemplando a xícara, examinando detidamente seu desenho, o formato em curvas, o friso dourado. Deixou-a sobre o pires e concluiu:
— É um belo exemplar.
Luisa olhou em torno, em pânico. Sabia que precisava acalmar-se, tinha de tomar uma atitude. A vida de seu filho dependia dela. Só havia uma saída, a janela que dava para a área de iluminação, da qual teria acesso à sala, se tivesse sorte que a outra abertura também estivesse aberta.
Então, empurrou a cama devagar, tentando não fazer algum ruído que alertasse a mãe. De repente, as dores voltavam e se contorcia, suava muito e aguardava que amainassem. Muniu-se de um candelabro de bronze, caso precisasse quebrar as vidraças e acessou o parapeito da janela, sentando-se para se recuperar do cansaço. Logo, atirou-se, desequilibrando-se entre vasos de flores e arbustos, ferindo as pernas nos espinhos e galhos.
Atravessou ansiosa e prostrou-se frente à outra janela, que dava para a sala.
Luisa começou a chorar, sentindo que as forças faltavam e que morreria ali, que perderia o filho do qual Saymon jamais saberia da existência.
Pensando desta forma, reagiu, investindo numa chance, mínima que fosse. Como imaginara, a janela estava fechada, felizmente, com as venezianas e postigos abertos. Puxou um vaso com raiva, apoiou-se nele, erguendo-se e atingiu os vidros com força. Quebrando-os, enfiou a mão, puxando o ferrolho. Ato contínuo, empurrou rapidamente as vidraças, segurando-se no caixilho e subindo num esforço sobre-humano, conseguindo jogar-se para dentro do cômodo. Correu ao rádio, pedindo socorro.
Sua voz fraquejava, as dores voltavam intensas. Sentia-se desmaiar, mas usava a energia que dispunha para superar os seus limites. Precisava se comunicar, algum dos amigos a ouviria e a salvariam. Custou-lhe conseguir uma frequência que houvesse registros mais próximos.
Até que finalmente, alguém ouviu o seu pedido de socorro. Era um radioamador, como tantos, conhecido de seu pai e dela própria. Perguntou-lhe insistente de que falava, já que não a entendia com precisão. Clara não conseguia falar, apenas balbuciava que estava grávida, que chamassem o pai no banco, que a ajudassem. Mas sua voz soava distante e fraca.
De repente, um arrepio de terror percorreu-lhe o corpo. Uma mão pesada pousava-lhe nos ombros, puxando-a para trás. Moema a olhava com extrema compaixão. Luisa tentou afastar-se. Moema a segurou, furtiva. Olhava-a fixamente nos olhos, exalando o hálito forte, enquanto falava.
— É tarde demais. Você não vai ter este filho, Luisa. Você não vai criar um filho de estrangeiro dentro desta casa! Um nazista nojento!
Luisa retrucava com dificuldade:
— Eu vou morrer também, mamãe. Se não tiver ajuda, eu vou morrer.
— Pois que morra! Assim, pagará a vergonha que me fez passar! – Terminava a frase, soltando-a num movimento ríspido. Luisa desequilibrou-se, caindo. Moema afastava-se, rapidamente. No olhar, um brilho indefinido. Bateu a porta com força.
Luisa ouvia seus passos em direção à cozinha e logo em seguida, descendo a escada do porão. Sentia-se desfalecer, mas lutava em manter-se lúcida.
A voz do rádio cessou. Ela tentou levantar-se, apoiando-se no móvel em que estava o rádio. Tentava comunicar-se, mas a onda se desvanecia a todo momento, ouvindo-se apenas sons misturados, conversas que se deslocavam no espaço. Caiu em pranto convulso. Ficou ali, na cadeira, as pernas entorpecidas, os olhos cansados, um abandono no corpo.
De súbito, ouviu batidas ao longe, muito longe, quase não conseguia distinguir. Barulho de chave e maçaneta. Sentia-se confusa.
As vozes emudeceram. Nem percebera que aumentavam, alteradas. Pessoas corriam, telefonavam, ligavam o automóvel, seguravam-na.
Estava salva.
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