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M o E d A s NaS F r E s T a S

Corri e juntei com as mãos todas as moedas. Nem pareciam de ouro, prata ou qualquer metal precioso. Eram de cobre ou estanho vagabundo, não sei. Mas faziam parte do meu mundo.

Quando as atiraste no assoalho de casa, custou-me encontrá-las, caídas algumas nas frestas quase fendas que se abriam na madeira tosca. Temia até empurrá-las mais para baixo e chegar ao inferno. Temia enfiar a mão e todo meu braço ser sugado pelo inimigo desconhecido.

A noite se formava lenta e eu sabia que precisava com urgência juntá-las e apanhá-las do chão antes que chegasses. Por certo, ririas na minha cara com aquele riso debochado que sempre se acendia nas horas de absoluta ironia.

Quantas vezes te evitei e fingi desconhecer tuas metas.

Quantas não ouvi o guizo de teu pescoço, saltitando pela floresta perto de nossa casa. Quantas vezes te esperei faminto e sonolento, com a certeza de que não virias.

Mas hoje tinha certeza de que o sangue que te alimentava, alimentava também minha solidão. O sangue que trazias em tua boca suculenta, me dilacerava as veias da alma, mas as libertava para entrar no teu mundo bolorento e sujo.

Quisera fugir muitas vezes, é verdade.

Queria recusar teus carinhos, teus afagos, teus mordazes gestos de dominação.

Mas não podia, não ousava nem tinha coragem. Sabias por certo de minhas fraquezas e zombavas disso.

Hoje porém jogaste todas as moedas fora. Deixaste de lado a única coisa que me ligava à vida passada, à vida que não era mais minha, que devia ser esquecida, mas que eu teimava em relembrar e tentar experimentar o que haviam deixado. Marcas, cinzas de um passado glorioso, expurgado pelo fogo tisnando as paredes, envolvendo em brasas o piso maciço, lambendo meus braços e pernas, retorcendo meus dentes e afundando-me o crânio. Não era mais nada, um pedaço tisnado jogado num piso dilacerado.

Sei que me salvaste, que me deste a vida, que me transformaste num brinquedo obediente e cínico. Não importa. Tinha meu visgo deixando marcas no presente. E que o passado se fodesse. Que eu me tornasse único. Um ser só, sem vida, sem perspectivas, sem passado, sem desejos, sem futuro.

Trouxeste as moedas e jogaste na minha mesa.

Puseste tuas mãos peludas e rudes nos meus frágeis frangalhos de braços e mãos, beijaste minha boca com lascivo desejo. Me possuíste com fúria e poder.

Depois, jogaste tudo pro alto. Lambeste o chão, como um verme que vomita o próprio lastro, para marcar presença. Fugiste de mim, volúvel, me deixaste só.

Ouço teu uivo ao longe, nas cercanias, mas longe, só porque o som ecoa. Sei que não virás.

As moedas que jogaste trouxeram a sina que carrego para sempre. As moedas são foscas, velhas e amassadas. Passaram de gerações e não valem nada, nem o valor da substância que as constituem. Sei que foi o símbolo de tua ida e nunca-mais volta. Sei que quiseste afirmar que o guizo anunciará cada vez mais longe e que talvez o teu ciclo acabe e não voltes mais como lobo sedento e amante, mas homem alienado nas rotinas do mundo.

Quisera que fosses assim, como sempre foste. Um mundo à parte, um mundo que se desenrola entre paredes de sangue e paixão. Uma paixão eterna, num lobo deformado e velho. Quisera que teus dentes apodrecessem e teu coração se degringolasse em meu colo. Serias meu. Seria teu. E num lapso de tempo, morreríamos do mesmo mal.

Mas jogaste as moedas e não posso buscá-las, porque o assoalho está cada vez mais podre, tudo em ruínas, o mundo em ruínas, o outro não existe na minha percepção, só o lobo que me persegue. Quisera sentir tuas garras no meu pescoço, teu lombo em minhas costas e teus dentes em minha boca.

Quisera reviver o fascínio da morte em vida.

Agora o silêncio entre árvores milenares, o instante do último sinal, tudo parou, se aquietou.

O vidro da janela se estilhaça no chão. Recolho os cacos devagar e por um momento, me olho, imaginando no espelho. Não reconheço o outro que vejo, não reconheço a diferença em meu entendimento e razão. Não é aquele que sou. Por isso não o quero.

Volto-me para as moedas. Já não ouço nada, nem o eco de teus vagidos. Enfio o meu braço nas fendas do assoalho, devagar, levo a mão direita tateando pelos cantos, sentindo pequenas fricções de penas de pássaros, algumas teias de aranha, tudo muito tranquilo, nada peçonhento, nem monstros me segurando.

Fico cada vez mais curioso e enfio o braço atingindo o chão gosmento de lama.

Enfio os dedos no que suponho a lama encharcada dos esgotos que vazam dos rios. Procuro as moedas, vou de um lado para o outro até me doer o braço direito.

Ouço um leve tilintar, como se encontrasse as moedas na escuridão.

Procuro ansioso e não encontro nada, o ruído aumenta cada vez mais. Sinto que meu braço mergulha naquele aterro sem vida, amorfo e medíocre.

Se Deus que criou esse desejo medonho, porque não me deixa chafurdar na lama com prazer? Por que me reprime e me despe da paixão.

Se amar tem um preço, por que não o valor das moedas que tinha em mãos?

Retiro a mão num ímpeto.

Levanto-me e tropeço numa tábua que se solta.

Meu braço se confunde com a tisna de meu corpo.

O barulho aumenta e se aproxima; o tilintar absurdo que me rasga os tímpanos. Corro para a janela estilhaçada.

Olho para a escuridão e um brilho de chocalho cega meus olhos.

É ele, com o guizo sacudindo no pescoço, como animal desenfreado num estouro da boiada.

É ele que se aproxima fazendo barulho, me procurando para acabar, por certo, com a nossa ruína.

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