Ao acordar na manhã seguinte, o primeiro pensamento que ocorrera à Clara se referia à conversa que tivera com Nael. Durante todo o tempo, teve a impressão de que eram velhos conhecidos, embora a dificuldade da língua. Não podia se furtar aos pensamentos que se dispersavam, estava inquieta, motivada pelo diálogo que mantiveram tão animados.
Entretanto, não era uma inquietude que se traduzisse em ansiedade, ao contrário, sinalizava uma convicção de que agira corretamente. Já de banho tomado, colocou as lentes de contato, ritual de todas as manhãs e guardou cuidadosa, os óculos na bolsa que levaria para a Universidade. Antes de sair do quarto, acessou seus e-mails. Nada de novidade, a não ser as mensagens de seu orientador, algumas newsletters que a encaminhavam a textos de artigos de revistas ou jornais e muito lixo eletrônico.
Ela não se concentrava em nada. Pensava nas expressões peculiares de Nael, no seu jeito amistoso de falar, no esforço de se fazer entender. Via-o por momentos, como se apresentara inicialmente, aquele olhar assustado, suplicando ajuda, temeroso de ser capturado como um foragido e comparava-o com o novo homem que estava se transformando.
Um homem tranquilo, que manifestava uma paz interior, apesar dos percalços que se transformara a sua vida, desde que deixara o país de origem. Ou talvez o inferno de sua vida se amainasse um pouco. Um homem que lutava para sobreviver, que tinha se exilado da própria pátria, considerado um pária, em virtude de expor a opinião que desagradava o regime.
Nael era um jornalista condenado à morte, e que se ocultara naquele navio, à espera de um resgate, na possibilidade de conseguir asilo no país, um clandestino. Na verdade, nem sabia em que país iria parar, apenas que era um lugar distante e que a qualquer momento seria descoberto.
Clara pensou em consultar um especialista em direito internacional, para descobrir até que ponto seria viável a sua permanência. Além disso, não podia abrigá-lo a ficar quando estivesse recuperado. Largou o tablet junto à bolsa, num gesto compulsivo, como se tentasse afastar também aquela imagem que a acompanhara toda a noite.
Voltou para o espelho, maquiou-se e penteou os cabelos que pendiam à altura dos ombros, despindo o roupão e vestindo as meias de náilon. Sem demora, retirou a roupa que deixara na poltrona, próxima à cama: um caxemira cinza, a calça marinho, o casaco curto, cachecol, luvas e compondo o visual, as botas de cano curto.
Antes de sair do quarto, telefonou para a faxineira, avisando que não viesse hoje, evitando que encontrasse o estrangeiro. Passou pelo quarto pequeno, improvisado de sala de TV, agora transformado em quarto de hóspedes para Nael e parou um pouco, à porta. Suspirou, levantou a cabeça e afastou-se depressa em direção à rua. Correu para a garagem, pegou o carro e partiu em direção à universidade.
Nael ouviu quando a porta bateu. Estava acordado desde os primeiros ruídos do dia. Também ele pensava sobre a conversa com Clara. De repente, a sua vida tomava um rumo novo, que o resgatava alguma esperança. Sentia-se fisicamente mais forte, tanto que em poucos minutos estava desperto, tomando o café instantâneo, aquecido no microondas. Conforme solicitado, usaria o computador do escritório para tentar examinar as últimas mensagens que recebera e cientificar-se se haviam dado conta de sua fuga.
Estava dirigindo-se para lá, quando a campainha tocou. Teve um sobressalto. Por um momento, a perseguição veio-lhe à mente. Aquietou-se. Ficou em silêncio.
Clara estaria voltando? Não, ela não tocaria a campainha, pois teria a chave como proprietária do apartamento.
Insistiram duas vezes. Ele permaneceu parado, sem mexer um músculo. Ao desistirem, respirou tenso. Seu rosto insistia num tremor involuntário. Deu alguns passos para o escritório e sentou-se na escrivaninha de Clara. Lembrou das roupas. Dos poucos documentos que carregara consigo, do dinheiro que escondera dentro das botinas. Onde estariam? Sabia que permanecera o tempo todo na sala de estar, mas não recordava o que fez com as roupas, o casaco molhado, os calçados. Estava fraco e febril, os fatos confundiam-se em sua mente. Lembrava apenas da ajuda providencial de Clara, da solidariedade, do seu carinho e que durante à noite, haviam conversado durante tanto tempo, que se perdera nas horas, sentindo-se tão à vontade, como se estivesse em casa.
Ao pensar em casa, veio-lhe tudo à lembrança, talvez o que não dissera, a sua tragédia pessoal que o transformara num homem inseguro, temeroso pela sobrevivência, pelo que restara de sua luta tão inglória quanto a esperança de Tamara.
Lembrava de sua figura frágil, de seus olhos aguados e tristes e seu coração se enchia de dor. Lembrava da hostilidade que ela tinha por sua profissão, pelo medo de ser sequestrada ou mesmo ser assassinada, sofrendo constantemente as ameaças que assolavam as suas vidas. Mas ele não podia refrear a intensidade da luta, precisava revelar ao povo quem era a verdadeira ameaça à população, quem transformava a guerra em terrorismo, quem destruía legiões de crianças famintas e desamparadas. Ele não podia desistir. Desistir era garantir a vitória do regime, da censura, da falta de liberdade, da falência da nação. Tinha a sua função social de jornalista e a usaria até que as forças lhe faltassem ou que houvesse uma mudança na realidade de seu povo.
Mas, um dia, acontecera o inevitável, a vitória da força, da exceção, a cruzada pela morte e destruição. Um dia, transformaram Tamara, o amor de sua vida, em vítima, sequestrando-a, punindo-a pela luta que empreendera, punindo-a pelo próprio fracasso ao diálogo, à tolerância, à sensatez.
Mais produtiva para eles era a vingança do que o convencimento. Ele se apresentara, suplicara por sua vida, na tentativa fazer um acordo, no qual contrariaria os seus princípios, negaria os seus conceitos mais profundos em troca de sua libertação.
A princípio, aceitaram. Ele se exoneraria do jornal, faria um artigo pedindo desculpas ao sistema ditatorial do País e pagaria com a prisão, o preço necessário para a liberdade.
Mas não cumpriram o trato: a milícia armada largou o corpo de Tâmara em seu prédio, com a cabeça decepada.
Foi neste momento, que ele percebeu que não teria mais nada a fazer, senão fugir para sempre, mesmo que significasse a morte, mas pelo menos, não da maneira como queriam.
Estas lembranças o fizeram chorar. Não conseguia livrar-se dos fantasmas e de repente, a sua vida pouco valia em função do acontecido com Tamara. Sentia-se culpado por estar vivo, por ter fugido, por ter pensado em sua vida, quando nem conseguira fazer um funeral decente à sua mulher.
Estava assim absorto, não tendo mais a disposição e energia que expressara antes. Um cansaço absoluto o atingia. Doíam-lhe as costas, como se carregasse um fardo muito pesado. As maçãs do rosto se contraíam e a visão nublava. Ficou assim, não sabe quanto tempo. Esqueceu de pesquisar as mensagens, os jornais do exterior, as notícias de seu País. Esqueceu de buscar o seu nome na lista de foragidos.
Num impulso, levantou-se devagar, pernas tensas, como se o fardo o afundasse no chão. Sabia que precisava fazer alguma coisa, já que nem conseguira acessar a rede, tão desolado se encontrava.
Aproximou-se lentamente da janela e como Clara, no dia anterior, deixou-se ficar ali, observando os telhados cinzas, só que desta vez iluminado pelo sol forte que já se vislumbrava na manhã clara.
Apesar de inverno, estava um céu limpo e até aquecera um pouco. Não havia pombas, nem nada estranho que lhe chamasse a atenção, a não ser alguns rolos de filme, semelhantes ao que ele encontrara sobre a escrivaninha.
Estava tão distraído, que nem percebera a janela do apartamento ao lado, cuja esquina fazia um ângulo de 90 graus, à esquerda.
Subitamente, ele ouviu um barulho metálico, de batida em vidro. Era justamente daquela janela que ouvira o estalido e percebera o perfil de alguém que lhe acenava por detrás da vidraça.
Afastou-se intuitivamente da janela, esbravejando. Não poderia ser notado.
Mas o que estaria acontecendo?
E se aquela pessoa estivesse pedindo socorro, necessitando de ajuda?
Ficou dividido, sem saber que atitude tomar.
De qualquer forma, não a entenderia, ainda assim, ficou observando, meio à distância, para tentar descobrir alguma coisa.
A janela se abriu de súbito, batendo os postigos na parede do prédio e uma mulher apareceu, debruçando-se no parapeito.
De repente, jogou um objeto em cima do telhado. Parecia uma latinha de cerveja.
Ela debruçou-se mais, vergando o corpo mirrado para um lado e para o outro, como se procurasse alguma coisa. A seguir, ela puxou uma carteira do bolso do casaco e acendeu um cigarro, jogando o palito do fósforo sobre o telhado, como fizera com a lata de cerveja.
Ficou fumando assim, despreocupada, olhando para o céu. Ficou algum tempo naquela posição, pensativa. Logo, produziu algumas baforadas e voltou para o interior do prédio, deixando a janela aberta.
Nael observou a cena, inquieto e curioso. Tranquilizou-se por não se tratar de um pedido de socorro.
Voltou a sentar-se e ligou o computador, mas lembrou que deixara a roupa atirada no piso do banheiro.
Se Clara não houvesse recolhido, ela ainda estaria lá.
Estava ansioso para encontrar as poucas coisas que o identificavam, que revelavam que tinha um passado, como todo mundo. Havia elos na corrente, dos quais fazia parte. Eram suas raízes que se manifestavam, nem que por apenas uns papéis escritos, uns documentos ou algumas fotos.
Além disso, precisava do dinheiro para custear a sua estadia, para procurar um lugar para ficar.
Não poderia prevalecer-se da benevolência de Clara, nem tampouco prejudicá-la acobertando-o em sua casa.
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