Agora, porém Clara não poderia voltar
atrás, nem abandonar o estrangeiro à própria sorte, além do que estava
comprometida até a raiz dos cabelos. No
momento em que decidira ocultá-lo das autoridades, tornava-se cúmplice de
qualquer ato ilícito que ele houvesse praticado, além de ferir a ética
profissional. Ela arriscara o seu emprego que a habilitava a prosseguir os
estudos e manter a situação financeira regular que possuía.
Clara
estava preocupada, quando o viu aparecer na porta do gabinete. Teve a estranha
sensação de reconhecer nele uma pessoa conhecida, como se fosse um de seus
pares, um colega da faculdade, um companheiro de infância. Mas havia algo
singular : o sorriso franco, o olhar penetrante, o gesto afetuoso de quem pede
ajuda e reconhece com gratidão.
Via nele uma alma instigante, mais do
que um homem que agora lhe parecia bonito, vestido naquelas roupas emprestadas,
no blusão que comprara, inclusive os sapatos esportivos, que sem dúvida,
ficaram enormes em seus pés.
Mas ele estava ali, a sua frente, um
homem novo, que sorria e lhe dizia coisas que só compreendia pelos gestos ou
mesmo na necessidade intrínseca da comunicação.
Sentiu-se
uma tola por não tomar nenhuma atitude, por permanecer ali, parada, sem ter o
que dizer. Não podia estar impressionada com alguém que conhecera de uma
maneira tão singular, cercada de conflitos e decisões urgentes.
Ele deu alguns passos até ela,
estendeu-lhe a mão, cumprindo o roteiro do agradecimento e parecia tão sincero,
que a emocionou.
Clara
então, disfarçou uma lágrima, empurrando os óculos embaçados. Sabia que
fragmentos de sua vida estavam por aí, atirados, como retalhos esquecidos, como
os que sua mãe deixava após uma noite de trabalho na costura. Retalhos que não
se encontravam, que não combinavam os matizes, nem os tamanhos.
Entretanto, alguma coisa nova os unia, uma
tecnologia nova reestruturava todo o tecido, transformando o que era velho ou
perdido.
Ficara
assim, por um momento, feliz e nem sabia se era a presença dele ou a
possibilidade de mudança em sua vida, um rumo diferente, mesmo que lhe
trouxesse dificuldades, mas um atalho que lhe permitisse ousar. Não mais um
fragmento. Não mais um retalho. Mas um tecido vibrante e vistoso.
Então levou-o até a cozinha e antes de
qualquer coisa, serviu um suco para os dois e alguns sanduíches naturais que
trouxera.
Em
seguida, preparou-se para uma aventura: vestiu um avental, cortou cebolas,
tomates, fritou pedaços de frango e preparou uma sopa, uma tentativa jamais
empreendida.
Ele a observava atento, analisando-lhe
os gestos, a maneira agitada de correr de um lado para o outro, procurando temperos
entre latas de mantimentos e outros objetos.
Enquanto se orientava na tarefa, Clara explicava que ele precisava se restabelecer e somente uma sopa nutritiva proporcionaria o vigor necessário, inclusive para ela, que passara o dia praticamente dormindo.
Em pouco tempo, estavam comendo o que ela decidiu chamar de sopa, mas que para ele, se revelava um jantar saboroso.
Os dois comiam em silêncio, o suficiente para que Clara observasse os gestos pausados, a maneira metódica de partir o pão, colocando-o ao lado do prato, a leveza com que segurava os talheres, como se comer despendesse uma energia exclusiva, adequada ao momento.
Enquanto se orientava na tarefa, Clara explicava que ele precisava se restabelecer e somente uma sopa nutritiva proporcionaria o vigor necessário, inclusive para ela, que passara o dia praticamente dormindo.
Em pouco tempo, estavam comendo o que ela decidiu chamar de sopa, mas que para ele, se revelava um jantar saboroso.
Os dois comiam em silêncio, o suficiente para que Clara observasse os gestos pausados, a maneira metódica de partir o pão, colocando-o ao lado do prato, a leveza com que segurava os talheres, como se comer despendesse uma energia exclusiva, adequada ao momento.
Ele levantou os olhos por um momento e a
encarou, curioso. Clara sorriu, complacente. Em seguida, perguntou qual era a
sua profissão.
Nael silenciou. Esforçava-se, procurando
as palavras certas para responder à inquietação de Clara. Precisava ser
objetivo, situar em que contexto se inseria a sua profissão, o argumento que
certamente esclarecia a sua fuga para o Brasil.
Ao recolher-se ao seu quarto, mais
tarde, Clara inevitavelmente evocou a história de Dona Luisa. Havia semelhanças
que a perturbavam, mas que produziam ao mesmo tempo, uma sensação de conforto.
Lembrava do primeiro dia em que entrara no apartamento de Dona Luisa.
O apartamento era claro, bem iluminado
e, embora as paredes revelassem vestígios de pinturas anteriores, tudo era
muito limpo e organizado. Não havia móveis ou ornamentos opulentos, ao contrário,
a decoração manifestava um despojamento franciscano. Tudo parecia planejado
para parecer simples e útil, mas se
respirava uma sobriedade que Clara não identificava a origem. Imaginava que
fossem os quadros antigos nas paredes, as gravuras assinadas, uma ou outra
fotografia sobre uma mesinha de canto na sala de estar. Lembrava das poltronas escuras, vestidas por panos coloridos, alguns
bordados à mão. Poucos móveis a completavam, de forma eclética. Mais parecia
uma sala de jantar, com móveis espalhados e conectados a sua serventia. Um
espelho bisotê sobre um consolo antigo, a mesa de jacarandá ao canto cercada
por cadeiras de exemplares distintos e uma estante com livros.
Dona Luisa pediu que ela sentasse, acomodando-se
também a sua frente. Trazia alguma coisa nas mãos, que se assemelhava a um
caderno ou álbum.
Clara percebia um leve estremecimento, vendo-a segurar o objeto como se fosse uma relíquia.
Clara não entendia o pedido para que fosse até lá, mas costumava dispensar-lhe uma paciência que normalmente não possuía. Estava assim, entretida, que surpreendeu-se quando ela começou o assunto.
Clara percebia um leve estremecimento, vendo-a segurar o objeto como se fosse uma relíquia.
Clara não entendia o pedido para que fosse até lá, mas costumava dispensar-lhe uma paciência que normalmente não possuía. Estava assim, entretida, que surpreendeu-se quando ela começou o assunto.
Dona Luisa olhava-a fixamente, os olhos castanhos
e a boca levemente apertada, com as bochechas flácidas, revelando uma pele
fina, quase transparente.
Clara percebia que os cabelos estavam meio embaraçados, pintados de forma irregular, intercalando fios brancos e castanhos. Imaginou que deveria ter sido uma mulher bonita, pois quando sorriu e isto ela viu pela primeira vez, seus dentes eram perfeitos, bem cuidados e por um momento, iluminaram-lhe a fisionomia apática.
Clara percebia que os cabelos estavam meio embaraçados, pintados de forma irregular, intercalando fios brancos e castanhos. Imaginou que deveria ter sido uma mulher bonita, pois quando sorriu e isto ela viu pela primeira vez, seus dentes eram perfeitos, bem cuidados e por um momento, iluminaram-lhe a fisionomia apática.
— Não quero que estranhe, tê-la chamado aqui. Não sou de incomodar
ninguém.
— Não estranhei, não – mentiu Clara.
— É que você é minha vizinha de porta. E como não tenho ninguém,
precisava pedir-lhe um favor.
— Não se preocupe. Se puder ajudá-la.
— Está vendo este caderno aqui – estendeu-lhe com a mão trêmula, mas
não o entregou, deixando-o na poltrona ao lado
– parece um álbum, mas é um
caderno velho, de capa dura. Eu o recebi há alguns dias, pelo correio. No
envelope não constava nenhum remetente, apenas o país de origem, a República
Tcheca, mais precisamente de Praga.
Clara ficou entre pensativa e curiosa. Luisa a fitava apreensiva.
— São cartas antigas, do tempo da guerra, cartas que enviei e outras também
endereçadas a mim. Além disso, há uma série de textos que contam uma passagem
de minha vida. Mas não se preocupe, nada comprometedor. E depois, minha filha,
isso aconteceu há tanto tempo. Na época da Segunda Guerra, em que a
Tchecoslováquia era um aglomerado de países.
— Desculpe, dona Luisa, mas não ficou claro o que a senhora quer de mim.
— Quero que você o guarde, quando eu morrer.
— Não diga isso. A senhora é forte. Vai ficar muito tempo com a
gente.
— Eu sei que ainda tenho um tempo. Se você quiser, em troca deste
favor, eu lhe conto tudo que se relaciona com estas cartas.
— Terei prazer em ouvi-la. E se quiser que eu guarde, não se preocupe,
que o farei.
— Que bom, me sinto aliviada. Espere, vou lhe mostrar outra coisa.
Levantou-se e dirigiu-se ao quarto. Ao voltar, trouxe um pequeno baú envernizado,
fechado à chave.
— Este também será seu. Um dia, lhe confiarei a chave. Não é nenhum
tesouro, apenas rolos de filmes com fotografias que nunca foram reveladas.
Também algumas joias sem muito valor, pequenas recordações.
Clara percebeu que a voz antes forte,
falhava toldada de uma emoção antiga, mas que se avivava por algum motivo neste
momento. Clara que anteriormente preconizava uma empatia com Luisa, agora tinha
motivos maiores para justificar esta aproximação. Logo ela, que não se envolvia
muito com o pessoal do prédio, inclusive porque andava sempre às voltas com seu
trabalho, horários diversos, além das aulas da Universidade.
Agora sentia-se responsável. Não sabia
que histórias ela tinha para contar, nem mesmo que tipo de objetos havia
naquele baú ou que terríveis lembranças
poderiam vir à tona naquele caderno antigo. Mas ela fora a escolhida e por que
não seus parentes. Embora tenha dito que era uma mulher sozinha, deveria
existir algum parente distante, um sobrinho, um irmão. Decidiu inteirar-se mais
sobre sua vida.
---A senhora não tem parentes, disse que é uma mulher sozinha. Mas
nenhum primo distante? Ou sobrinho?
<p>— Sim, distantes, muito distantes, tanto física quanto espiritualmente.
Tenho alguns sobrinhos que moram no interior do Espírito Santo. Mas não os
conheço. <br />
<p>Clara suspirou, sem saber muito bem como concluir a conversa. <br />
<p>— Então está bem. Quando quiser, ficarei com o caderno. <br />
<p>— Quando Deus quiser. <br />
<p>— Para falar a verdade, a segunda parte do trato é que me interessa.
Quero que me conte toda a sua história. <br />
<p>Ela sorriu e convidou-a para um café. <br />
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