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A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO V

CAPÍTULO V

Quando o celular tocou, Clara não conseguia entender onde estava. Dormira durante tanto tempo que poderia ser qualquer hora do dia ou da noite.

Então, pegou o celular que estava sobre a mesinha de cabeceira e atendeu, desligando-o em seguida, percebendo tratar-se de uma mensagem da operadora.

Levantou-se, doída, sentindo as pernas bambas, como resultado de um esforço extremo.

Ouviu ruídos lá fora, um galho de árvore que insistia em roçar a lateral do prédio, agitado pelo vento. Cães latiam ao longe.

Voltou ao celular, desta vez para certificar-se das horas. O entardecer de inverno se despedia rápido. Anoitecia no mesmo compasso. Passava das seis.

Espiou pelas frestas das venezianas e observou as luzes da rua.

Procurou os óculos sobre o baú, limitando pela mão os espaços mais prováveis onde os teria deixado, talvez entre livros e revistas, ali esquecidos. Enfiou-os sobre o nariz, ajeitando-os com o polegar e como por encanto, o presente voltou à tona, com as cores fortes de seu quarto, as paredes embrulhadas em quadros de vanguarda, inclusive de sua própria autoria.

E o presente estava bem próximo, na sala e do qual ela parecia ter se esquecido.

O sono fora tão intenso, que foram relegados a segundo plano todas as atividades normais, desde a preparação da monografia até se alimentar.

Lembrava-se apenas que se esticara na cama, com a roupa em que estava vestida e mergulhara na leitura de uma revista.

Então, lavou rapidamente o rosto, penteou os cabelos e prosseguiu na maratona de arrumar-se.

Coração aos saltos, chegou na sala e encontrou o homem recostado no sofá. As roupas amarfanhadas, olhar parado no teto, pernas esticadas com os tornozelos à mostra sob as botinas engendradas nos pés.

Quando se aproximou, ele voltou-se rapidamente para ela, como se já a esperasse.

Clara sorriu e perguntou se estava melhor.

Ele fez um gesto afirmativo, acenando suavemente a cabeça.

Clara suspirou aliviada, pelo menos, ele entendia em inglês. Indagou se estava com fome, se precisava de alguma coisa e por fim sugeriu um banho. Ouviu um agradecimento e animou-se perguntando-lhe o nome. Alertou-o de que ele não teria roupas, mas que poderia arranjar-lhe algumas peças. Lembrou que o noivo não tinha levado um terno que chegara da lavanderia, embora precisasse de roupas íntimas. Daria um jeito, compraria numa loja. Sentou-se a sua frente. Ele a observava.

— Nael Naji.

— Seu nome, ah, sim, seu nome. Meu nome é Clara. My name is Clara, ok?

Ele tentou repetir, mas não conseguiu. Clara percebeu que ele tinha mãos longas e pele delicada. Não devia ser um estivador ou trabalhador braçal. Mas poderia ser um psicopata, um maluco, um assassino, um foragido...Sim, foragido ele realmente é, mas supunha ser devido à política de seu país.

Lembrou dos documentos, perguntou se tinha algum.

Ele teve dificuldade em entender ou não queria dar-lhe maiores explicações.

Ela imaginou que talvez fosse um guerrilheiro ou terrorista.

Tentou calar os próprios pensamentos. Sentia-se ridícula imaginar histórias tão díspares e ao mesmo tempo, tão espantosas. Se ele fosse um terrorista, não pediria jamais a sua ajuda, pelo menos naquele estado em que se encontrava. Por fim, indagou se se fugia de seu país.

Ele silenciou por um momento. Ela se corrigiu da obviedade. Retomou o tema, esclarecendo melhor. Perguntou se havia prejuízos políticos, se ele corria risco de vida no país de origem. Ele concordou com um sim dissonante. Era um clandestino que fugia da guerra civil de seu País, o Egito.

Clara então calou-se, esperando que ele indagasse alguma coisa sobre a sua vida. O homem, no entanto, demonstrava estar ainda muito confuso, revelando na dificuldade em expressar-se, não somente pela barreira da língua, mas pela harmonização das ideias. Estava enfraquecido, tanto pela febre quanto pela dificuldade em manter o alimento. Clara estava convencida porém, que antes de tudo, ele precisava urgente de um banho. Por isso, fez um gesto, pedindo que esperasse, com a mão espalmada e voltou em seguida com uma camisa e a calça do terno. Mostrou-lhe e indicou o banho.

Nael segurou o objeto e ficou pensativo. Certamente, imaginava como colocaria apenas aqueles trajes sobre o corpo. Levantou-se com dificuldade, amparando-se no braço de Clara, que o encaminhava para o banheiro social. Explicava que traria roupas quentes, já que estava em apuros, com aquelas poucas vestimentas que conseguira. Ele a olhava surpreso, e talvez por isso, relutava em aceitar. Repetia várias vezes no inglês deformado, que não necessitava de mais nada. Tudo estava bem. E agradecia várias vezes com acenos.

Clara esperou que ele entrasse, pegou a bolsa que deixara sobre o móvel da sala, calçou os sapatos e desceu, satisfeita, por ser aquela a sua noite de folga e poder dedicar-se ao seu novo hóspede. Sabia no entanto, que deixara para trás o seu trabalho de dissertação, mas esperava ter ânimo para recuperá-lo à noite. Dirigiu-se à loja de departamentos mais próxima, comprou cuecas, meias e blusões de lã. Em seguida, pensou na alimentação e correu ao mercado.

Nael entrou no banho e ficou por um momento observando o ambiente. Tratava-se de um banheiro antigo, porém limpo e confortável. Despiu-se das roupas surradas e rasgadas com dificuldade, pois pareciam coladas ao corpo. Todas as peças estavam em estado deplorável, inclusive ele, que não sabia o que era tomar um banho desde que saíra de país. Lembrava dos momentos angustiantes, da pouca comida que trouxera, o chocolate para dar energia, o pouco de arak para relaxar, misturado à carga, ameaçado a cada momento que ouvia vozes ou sons dos portos, nos quais ocorria o abastecimento. Agora estava ali, protegido por aquela mulher, que o apoiara e lhe salvara a vida. Desfez-se com um pé das roupas que caíam no piso frio e ingressou no chuveiro, sentindo arrepios, que não conseguia identificar se eram de frio ou de satisfação pelo contato com água. Deixou-a escorrer nos cabelos, encharcando a pele, sentindo a barba amaciar, os pelos falhados se eriçarem, a boca receber o líquido, como um ritual de purificação. Pôs-se a ensaboar-se com energia, ajoelhando-se, sentindo as pernas fraquejarem, o corpo quase pender em razão do esforço consumido.

Apesar disso, estava feliz. Ainda de joelhos, lavava os cabelos com o próprio sabonete. Ajeitou-se no piso, sentando-se e segurando-se nos cotovelos. Deixou-se ficar assim, não sabe quanto tempo, até sentir-se apto a levantar-se, segurando-se onde podia, esforçando-se para não desandar no chão. Pensou numa boa escovação de dentes, mas isso, naquele momento, era impossível. O máximo que conseguiria era um bom gargarejo. Afastou-se devagar do boxe, aproximou-se do espelho e analisou-se minuciosamente, quase não se reconhecendo. Enxugou devagar o rosto, examinando detidamente as olheiras profundas, o rosto magro e moreno, que realçava o nariz alongado, a barba crescida, embora rala e o cabelo sem corte. Afastou-se para pegar a toalha deixada sobre o balcão e de repente, tudo ficou escuro.

Quando Clara entrou no elevador, percebeu que a espiavam da escada. Imaginou tratar-se da síndica para lhe informar alguma coisa. Então, aproximou-se do vão da escada e a pessoa subiu rapidamente, afastando-se sem olhar para trás. Percebeu que se tratava de uma mulher magra, ossuda, com um casaco comprido que parecia ser de um número bem maior. Ficou intrigada, mas não tinha tempo para elucubrações. Até sorriu, dizendo para si mesma, que o defunto era grande.

Voltou para o elevador com as sacolas nas mãos e no andar seguinte, o elevador parou bruscamente, assustando-a. A luz apagou por alguns instantes e a porta não se abria. Nisso, surgiu a mesma mulher que antes subira a escada, empurrando a grade. Fitava-a de uma maneira desconfiada.

Clara sentiu-se desconfortável com a presença e tentou manter um diálogo, ponderando qualquer coisa sobre o elevador. A mulher assegurou que ele funcionaria agora, como se determinasse o seu desempenho.

— Sei que não há nenhum problema. Só me assustei quando a luz apagou.

A mulher não respondeu, mas vez que outra a encarava, inquieta.

Clara percebeu que tinha o rosto fino, alongado, com sulcos severos em torno da boca e a pele era maltratada. Os cabelos eram grisalhos e presos por um atilho. Agora tinha certeza de que o casaco que vestia era muito grande. Mangas longas, que escondiam mãos de unhas pretas. Clara perguntou:

— Em que andar a senhora vai?

Ela respondeu, firme:

— Para o mesmo andar seu.

Clara estremeceu. Ninguém morava naquele andar a não ser ela. Mas então, seria ela a mulher da janela, a mulher que tomou conta do apartamento de Dona Luisa.

— Ninguém mora lá – garantiu – são apenas dois apartamentos por andar e o apartamento ao lado do meu está lacrado pela justiça.

A mulher a encarou com um leve sorriso e não disse nada. Clara prosseguiu, enfática:

— Hoje, pela manhã, eu percebi que alguém estava lá. Então era a senhora. Está fazendo faxina?

A mulher respondeu, taxativa :

— Não, eu moro lá.

— Como assim? A síndica está sabendo disso? – Clara perguntou intrigada e um pouco incomodada pelo atrevimento da mulher.

— Nem vai saber.

— Bem, isso não é da minha conta.

— Não e mesmo. – Concluiu com a voz arrastada e segura.

— Embora eu não concorde. Se a síndica souber, ela é capaz de chamar a polícia, sabia disso?

— Sabia que ia dizer isso, mas nós não podemos falar nada, não é mesmo?

— Como assim, nós? Eu estou no meu apartamento – Clara protestou.

— Mas a síndica não pode saber que tem um homem no seu apartamento – respondeu, irônica.

— O que a senhora quer dizer? – perguntou ainda mais indignada.

— O que você entendeu. A gente tem um pacto, a partir de agora. Você me protege e eu não conto nada.

— Mas não tem o que contar. Estou com um parente na minha casa.

— Um parente? Olhe, estamos chegando. Depois eu vou lhe visitar e a gente conversa com mais detalhes. Não se esqueça, eu sou uma mulher sem teto. Ele ... – calou-se. Puxou a grade de ferro e afastou-se para o apartamento ao lado, enquanto Clara a olhava petrificada. Antes de entrar, voltou-se em tom alarmante:

— Meu nome é Cida. Se precisar de alguma coisa, pode me chamar.

Clara dirigiu-se a sua porta, sem nada dizer. Entrou e deixou as compras na cozinha, separando as sacolas de roupas.

Voltou com elas, bateu na porta do banheiro, esperando algum sinal. Nervosa, chamou-o pelo nome várias vezes. Não se atrevia a entrar ou mesmo forçar a maçaneta. Finalmente ouviu uma voz fraca, como se ele não conseguisse responder. Perguntou se tinha problemas, acrescentou que estava com as roupas que ele necessitava, inclusive material de higiene, como escova de dentes e desodorante.

Ele, num esforço extraordinário, levantou-se, segurando-se no balcão e enrolando-se na toalha, aproximou-se da porta para abri-la. Clara esperava que ele estivesse vestido com a calça que lhe oferecera e apesar de ser uma mulher adulta, sentiu-se levemente enrubescer.

Ele tentou explicar que sofrera um desmaio, estava muito debilitado.

Ela ajudou-o a sair do banheiro e conduziu-o à peça mais próxima, que era o pequeno gabinete onde estudava. Sentou-o numa poltrona, pediu que descansasse um pouco. Percebeu que era muito magro, observando a ossatura larga, costelas surgindo, como se inspirasse profundamente o ar. Pediu que ao sentir-se melhor melhor, vestisse as roupas que trouxera. Deixou com ele a sacola e com um gesto, afastou-se, fechando a porta atrás de si.

Deu alguns passos pelo corredor, pensativa. Afinal, que estava fazendo com a sua vida, apoiando aquele clandestino. Mais do que isso, um homem doente, do qual apenas tinha conhecimento do nome e do país de origem, se é que lhe dissera a verdade.

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