Clara temia que os fatos acelerassem alguma atitude extrema que precisasse tomar. Não podia abandonar Nael à própria sorte, mas ao mesmo tempo, sentia-se constrangida pela revelação de Cida.
A sua situação se agravava, arriscava-se a ser parte de um processo administrativo que poderia afastá-la do trabalho, inclusive ser demitida. Na verdade, sentia-se uma tola, por ter deixado que os sentimentos sobrepujassem a razão, a ética profissional e os seus deveres de funcionária. Mas por outro lado, aquela situação havia preenchido uma lacuna de sua existência. Resgatando a liberdade de Nael, estava resgatando também um pouco de sua liberdade, sua condição de mulher, que se sentira ultrajada. Estava tão frágil e dependente quanto ele. Talvez por isso, tomara a decisão sem compromisso com a realidade.
Ele por sua vez, estava envolvido em muitas dificuldades e lutava, como ela, para sobreviver. Percebera a maneira aflita de Clara, após a conversa com Cida. Mostrara-lhe os pertences, alguns documentos, inclusive dinheiro, insinuando que precisava achar uma saída para não comprometê-la com seus problemas. Entretanto, nem desconfiava o quanto ela já estava comprometida.
Mas como dizer isso a ele, como explicar-lhe que pouco adiantaria ele sair dali, se aquela mulher sabia de tudo, se poderia contar a Gustavo ou a qualquer um, se poderia gritar ao prédio inteiro que ela escondia um clandestino em casa. Logo ela, que trabalhava num setor em que lhe depositavam extrema confiança.
Estava assim, confusa, quando ele bateu à porta do quarto.
Clara ajeitou os cabelos, puxando-os para trás. Depois secou os olhos com o dorso da mão e aproximou-se da porta, indecisa. Na verdade, não queria atendê-lo, não tinha o que dizer-lhe além do que conversaram. Mas parece que Nael tinha outra motivação.
Trazia nos olhos uma expectativa que a surpreendia, quando abriu a porta. Pediu-lhe desculpas no mesmo inglês obtuso, argumentando que gostaria de conversar com ela. Disse-lhe que a esperaria na sala ou no escritório, se não se importava.
Clara assentiu com a cabeça. Por um momento, sentiu um certo entusiasmo por aquela companhia inusitada. Acrescentou que faria um café e que conversariam em seguida, apenas ia arrumar-se um pouco.
Ele não entendeu o fato de arrumar-se, mas disse-lhe que a ajudaria, colocando a água no fogo. Afastou-se e deixou-a pensativa.
Que lhe falaria com tanta urgência? Que teria acontecido para chamá-la em seu quarto, depois de tudo que haviam conversado, inclusive sobre a vida dele, a profissão e suas dificuldades políticas. Mas, de todo modo, sentia um certo ânimo em seu estado de espírito que a deixava quase feliz.
Então, lavou o rosto e sem demora já esboçava uma maquiagem suave, escondendo o desânimo. Vestiu um blusão de lã fina que lhe delineava o corpo, sobre uma saia escura, aliando-os ao sapato preto, de salto não muito alto. Olhou-se de perfil, no espelho, virou-se de um lado, do outro. Por que estava tão preocupada com aquele homem a ponto de se mostrar bonita? Acenou a cabeça, negativamente. Evitaria qualquer análise de si própria.
Abriu a porta do quarto e deu alguns passos pelo corredor, sentindo um aroma gostoso de café. Sorriu, levantou a cabeça e dirigiu-se com elegância até a cozinha. Parou na porta e esperou a reação dele.
Nael voltou-se, com a chaleira na mão, para devolvê-la ao fogão. Ficou assim, com a mão no ar, segurando a chaleira, fitando-a embasbacado. Seus olhos estavam fixos naquela mulher que parava a sua frente, como se estivesse ali, exclusivamente por por ele.
Clara correu ao seu encontro e, sorrindo, tirou-lhe a chaleira, colocando-a sobre o balcão de pia. Ele também sorriu, desajeitado, avisando da tentativa de contribuir, fazendo o café. Ela concordou, dizendo que sentira o cheiro do café, ainda no corredor, quando saíra do quarto.
Então, quase se chocaram, estabanados, ele afastando-se do fogão, com a garrafa de água quente, ela tentando aproximar-se do outro lado do balcão de pia, para preparar uns sanduíches rápidos, abrir o armário aéreo, tirar alguns biscoitos, procurar as xícaras, os pratos e servir a mesa.
Em seguida, sugeriu que ele sentasse, que terminaria a tarefa.
Ele desobedeceu, queria ajudá-la, já tinha decidido. Tirou as xícaras de sua mão, dispondo-as sobre a mesa, colocando os pratos ao lado e os talheres.
Em seguida, tomaram o café, conversando amenidades. Ela contou-lhe sobre o curso de mestrado e as dificuldades em dividir o tempo, já que seu serviço exigia horários diversos. Falou sobre a mãe, que morava numa pequena cidade bem ao centro do estado, viúva e solitária, sempre preocupada, achando que estava sempre correndo riscos por viver sozinha. Costumava influenciar-se pelas notícias policiais, das quais fazia o seu programa favorito.
Nael a ouviu atento e numa pausa, perguntou se não havia riscos realmente em morar sozinha, se sua mãe tinha razão. E assim conversaram por muito tempo, até ele elucidar o motivo principal de sua conversa. Não devia esconder nada de seu passado, era preciso contar-lhe sobre Tamara, sobre a tragédia que fora a sua vida e da culpa que carregava por ter sido ineficaz em sua negociação.
Quando acabou, estava exausto. Clara percebeu seus olhos se encherem de lágrimas e o quanto aquele assunto o mortificava.
Nael soltou os braços sobre a mesa, como se desatasse um nó em seus músculos retesados, abandonando-os sem ação. Permaneceu calado, com a impressão de que as imagens nebulosas dos acontecimentos retomavam o rumo e lhe atingiam a retina.
Clara também estendeu os seus braços e quase sem querer, tocou-lhe levemente as mãos, consciente de que deveria confortá-lo de alguma maneira. Deixou-se ficar uns instantes, com as mãos sobre as dele, sentindo-lhe a pele fria e úmida. Tentou retirá-las, , mas ele as segurou, afetuoso e agradecido. Reteve-as assim, entre as suas, como se precisasse delas para sobreviver.
Clara então, levantou-se, afastando-as delicadamente, com a desculpa de convidá-lo para se dirigirem à sala. E assim procederam.
Nael, aos poucos foi reavendo a calma, extravasando os sentimentos, após tanto tempo contidos. Comentou sobre a fuga no navio e na espera torturante que havia sido a sua permanência, confinado entre a carga. Também considerava que ela havia sido um anjo, que o salvara, que cuidara dele e que já fazia parte de sua vida. Sua imagem estava gravada em seu espírito, guarnecida por sentimentos de carinho e gratidão.
Clara sorria, satisfeita. Queria interrompê-lo, mas não havia silêncios. Ele tinha uma necessidade de expressar-se, sendo fiel aos seus pensamentos. Aliado a todos os acontecimentos, preocupava com a segurança de Clara, já que ela estava envolvida com ele, comprometida com todo o seu drama, e ele não queria prejudicá-la, por isso, pensava numa maneira de procurar outro lugar para ficar. Ele tinha dinheiro que o ajudaria a sobreviver por algum tempo, vivendo em outro lugar como refugiado, até solucionar a sua situação, pedir asilo na embaixada, acertar a sua permanência no País.
Clara não concordava com esta decisão. Sabia que as leis eram severas com clandestinos, ele infalivelmente seria preso. Além disso, achava que era muito cedo para tomar alguma atitude, porque ele deveria se restabelecer. E entre uma discordância e outra, ficaram conversando durante muito tempo, tanto tempo que ela passou também a contar a sua vida e suas últimas frustrações.
— Como vê – concluiu em inglês – nós temos destinos semelhantes, embora o seu, muito mais dramáticos, porque esta tragédia abominável, só existiu em função de uma guerra civil e um regime de exceção. Mas, no meu caso, eu estou também muito infeliz, tive uma desilusão amorosa, senti-me abandonada, a última das mulheres. De certo modo, você foi a minha redenção.
A última frase, ela não chegou a proferir, sem coragem de prosseguir.
Finalmente, acabou contando-lhe sobre a mulher do apartamento ao lado, inclusive revelando suas chantagens.
Esta situação o tornou ainda mais convicto de que a sua presença só lhe traria prejuízos.
Clara afirmou que lhe falara sobre a mulher para que ele jamais abrisse a porta e acrescentou que dificilmente, Cida faria alguma coisa contra ela. Seu interesse era permanecer no prédio. Evitou entrar em maiores detalhes.
Ele por fim, disse-lhe que se sentia mal nesta situação de dependência, inclusive financeira, por ela assumir todas as despesas.
Clara, entretanto questionou o que ele faria num país estranho, do qual ainda nem conhecia o idioma. Não obstante, era um homem procurado em seu país, dia mais dia menos, descobririam o seu paradeiro.
Nael aquietou-se, pensativo. Imaginou que as investigações já deveriam ter começado.
Clara, adivinhando-lhe o silêncio, assegurou que nunca desconfiariam que ele estava escondido em seu apartamento, embora intimamente, se preocupasse com as desconfianças de Cida.
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