Quando anoitece, Fernando retorna para a casa onde decidira residir em definitivo. Uma casa que lhe traz muitas recordações, mas está disposto a enfrentá-las e conviver com elas. Afinal, foi a sua vida durante tanto tempo. Quem sabe, agora, ele a reconstrói e esquece para sempre o trabalho de jardineiro. Sabe que precisa andar na linha, para não voltar para a prisão, pois não suportaria voltar para aquele hospício.
Entra em casa e ao ligar o interruptor assusta-se com a presença de Linda, esperando-o na sala.
— O que está fazendo aqui? Como a senhora entrou?
Linda sorri e aproxima-se para abraçá-lo. A primeira reação de Fernando é afastar-se, mas lembrou-se das palavras de Alfredo, de que deveria ser cínico e não enfrentá-la. Então, dá um leve beijo na testa e afasta-se novamente perguntando como ela havia entrado.
— Desculpe, meu querido, não queria assustá-lo.
— Mas a senhora me assustou. Como vou imaginar que alguém estará aqui, dentro de minha casa? E se lhe dou um tiro?
— Você não faria isso. Sei que não pode usar armas.
— Mas eu tenho uma arma para defender-me. Por favor, minha tia, esqueça esse assunto. Não falamos em armas nesta casa.
— Não se preocupe comigo. Você sabe que estou sempre ao seu lado e farei tudo para protegê-lo.
Um pouco mais tranquilo, Fernando senta-se numa poltrona e observa que a casa está arrumada. Linda também senta-se a sua frente e , como se adivinhasse os seus pensamentos, comenta que organizara o que pudera, mas que a casa precisava de uma faxina mais esmerada.
— Sim, eu vou fazer isso. Mas por que estava no escuro?
— Eu estava descansando os olhos, pensando um pouco no passado. Ainda havia luz quando vim para cá, arrumei tudo e me sentei a esperá-lo. Foi escurecendo e fiquei aqui, quieta.
— Você tinha a chave da casa?
— Sim, é claro que eu tinha. Quando sua irmã ainda morava aqui, ela me dera a chave para vir quando precisasse de mim. Foi bem no período em que você esteve preso e ela, coitada, acabou estava muito deprimida. Depois foi embora, você sabe.
Fernando tenta mudar de assunto. Acrescenta que não tem nada para oferecer-lhe, pois ainda não comprara nada para a casa.
— Outro dia, eu virei aqui e você me fará um café. Hoje, está bem assim.
— A senhora teve a tarde de folga?
— Sim, como você. Parece que teve folga à tarde, também.
— Eu tive que resolver um problema.
— E está tudo bem? Quero dizer, em relação aos seus problemas com a justiça.
— Estou me mantendo de acordo com as normas. Acho que isso basta.
— Sem dúvida. Fico contente que você esteja superando tudo isso. Mas deve ter muito cuidado, você sabe que qualquer deslize, pode voltar para aquele inferno.
Alfredo concorda com um aceno. Linda prossegue, enfática:
— Por isso tem que tomar cuidado com quem anda, com quem conversa. Você não pode se meter em nenhuma furada. Quando o cara vai preso, ele fica marcado para toda a vida.
— Estou cansado desta história.
— Desculpe, só queria ajudá-lo.
— Eu sei, tia, mas por favor, não vamos mais falar nisso. – faz uma pausa e pergunta, tentando demonstrar serenidade – Mas me diga, tia, como vão os seus serviços com dona Santa? Parece que estão numa encrenca danada!
— Por que você diz isso?
— É o que todo mundo fala, que ninguém se entende naquela casa, é reunião em cima de reunião e os filhos ficam um para cada lado.
— É isso que você sabe?
— Tem mais alguma coisa?
— Não, na verdade eu sei muito pouco do que acontece naquela casa.
— E dona Santa não lhe conta nada? Não faz confidências?
— Dona Santa é uma mulher muito discreta. Não costuma falar sobre a sua vida.
— Então está tudo tranquilo, apenas fofocas dos empregados.
— Certamente. De minha parte, está tudo muito tranquilo. Dona Santa e eu somos muito amigas.
Fernando levanta-se,dirige-se à janela e observa a rua, por algum tempo, impaciente. Depois, abaixa a persiana e volta-se para Linda, perguntando:
— Mas a senhora não veio aqui apenas para arrumar a minha casa. Deve haver algum motivo.
Linda sorri, afetuosa.
— Você tem razão.
— Ah sim? – interessa-se, voltando a sentar-se. Ela prossegue no mesmo tom.
— Eu queria falar com você, mas não naquela casa. Foi muito bom você ter se mudado, por vários motivos, você sabe.
— Não, não sei. Quero dizer, sei os meus motivos, como por exemplo, ter mais individualidade, a minha vida própria. Morar naquela casinha, nos fundos daquela mansão me deixava sem ar.
— Você está sendo ingrato comigo. Eu fiz tudo para que se mudasse para lá, tivesse onde ficar.
— Sei tia, não me refiro à senhora. Mas sabe, que preciso ficar um pouco sozinho. Todos precisamos, não? Mas quais seriam os outros motivos?
— Você ter mais liberdade e não se envolver com a família. Não quero que fique como eu, uma pessoa da família, mas que na verdade, não passa de uma empregada.
— Mas você acabou de dizer que você e dona Santa são muito amigas. Eu pensei que era feliz naquela casa.
— E sou feliz. Sou muito feliz, porque me acostumei. Porque faz muito tempo que moro ali, e nem saberia mais viver noutro lugar. Mas você é jovem, tem uma vida pela frente. Deve construir a sua própria vida, a sua história.
— É verdade. Então me diga, sobre o que queria falar-me.
— Na verdade, eu vim alertá-lo.
— A senhora já fez isso, pediu que eu não entrasse numa furada.
— Sim, mas vou ser mais explícita agora. Eu acho que você não deve envolver-se com dona Santa.
— Como assim?
— Como lhe disse, eu gosto muito dela, mas também sei que ela não está bem de saúde. Outro dia, ela me pediu para chamá-lo, pois queria conversar com você. Eu tenho medo que ela acabe envolvendo-o em problemas.
— Não sei a que a senhora se refere. Há pouco, disse que tudo estava bem, que não havia nada de anormal na família.
— Meu filho, é que eu procuro não me intrometer nos problemas deles. Eles são eles, nós somos nós.
— A senhora está sendo contraditória.
— Fernando, por favor, tente compreender. Já que quer saber, eu vou lhe explicar o que sei, somente isso, porque não quero que você entre numa fria, como falei. Dona Santa está com problemas mentais, está confusa, se esquecendo de fatos importantes da vida dela e ao mesmo tempo, inventando outras histórias.
— Está ficando louca, então.
— Não sei, não sei. Talvez seja apenas uma fase, um problema provisório, talvez até uma depressão que vai passar um dia.
— E por isso, a senhora não quer que eu fale com ela.
— Não, de modo algum. Eu não disse isso. Eu não quero que você acredite no que ela diz. Aquele dia em que ela quis falar com você, deve ter pedido alguma coisa.
— Não pediu nada, ou seja, pediu.
— Eu não disse? Ela não está bem! O que ela queria?
— Queria que eu fosse na igreja e falasse com o bispo Martim.
— Com o bispo Martim? Não estou entendendo.
— Pois é, nada demais. Ela queria apenas uns documentos antigos, parece que a igreja tem documentos da família, certidões, coisas deste tipo.
— Que estranho! Por que não pediu a mim?
— Talvez não quisesse incomodá-la.
— Mas que documentos são esses?
— Como lhe disse, não sei ao certo. Acho que são certidões, registros da história da família.
— E você os pegou?
— Ele ficou de me entregar na semana que vem.
— Ah, então o assunto não tinha nada a ver com o sr. Sandoval?
— Não, ela nem falou nele. Por que teria?
— Não sei, dona Santa anda muito estranha. Mas olhe, que isto fique entre nós. Eu não quero de maneira alguma que isso se espalhe. Coitada, não merece ser criticada por aí, só porque anda meio confusa. De sua parte, acho melhor se afastar um pouco, e quando ela pedir alguma coisa, passe para mim a incumbência. Eu farei o serviço.
— Está bem, minha tia. Pode ficar traquila. Mas de qualquer modo, não há por que se preocupar. Eu quero distância daquela família. Quero viver a minha vida e logo que puder, que passar esse periodo difícil, eu vou cair fora.
Ela sorri, satisfeita. Em seguida, pede para Fernando chamar um táxi. Quando a vê afastar-se, Fernando liga para Santa.
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