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A fotografia da vida de Santa - CAP. 5

No quarto capítulo, Santa reúne a família para fazer uma proposta que se relaciona à missão que acredita possuir, a partir da visão da Virgem. Estão presentes a filha Letícia, que é promotora e seu marido Ricardo, que fica se perguntando qual seria o motivo da reunião. Por acaso a sogra leria o testamento? Também estava presente o filho que é um artista midiático, Tavinho. Por fim, chegara Alfredo, o terceiro filho, que se atrasara e segundo os demais está sempre ocupado com sua empresa. Linda, a empregada de vários anos, recebe a todos com carinho. O marido Sandoval não se furtou em contar, com discrição à Letícia, sobre a sua preocupação com a esposa. Dissera que ela tinha tido uma visão de Nossa Senhora e estava cada dia mais estranha.

A seguir o 5º capítulo de nosso folhetim dramático, porque hoje é sábado, um dos dias de publicação. Os capítulos são publicados nas terças-feiras e nos sábados. Boa diversão!

Capítulo 5

Todos pareciam pouco à vontade na biblioteca.

Alfredo passeou os olhos pelas estantes de madeira, repletas de todo o tipo de livro, sem sequer serem organizados sob qualquer ordem e lembrou do avô. Quantas vezes vinha até ali, ao seu lado, examinar as figuras dos atlas, escolher um livro infantil ou deparar-se com uma enciclopédia para os trabalhos da escola.

Ao seu lado, estava sempre a figura plácida e companheira do avô, servindo-lhe de guia naquela mina do tesouro. Recorda-o silencioso, ouvindo suas histórias, um mundo enriquecendo a imaginação.

Quantas vezes o vira agitado, entre jornais, procurando matérias que indicavam algum acontecimento político da época, que via de regra, o deixava de cabelo em pé. Era um homem apaixonado e tentava incutir nele toda a expectativa, a esperança no futuro e o otimismo que carregava consigo.

Alfredo possuía um carinho especial pelo avô, talvez muito mais do que pelos demais membros da família. Infelizmente, seu legado não surtira muitos efeitos. Não era um homem cheio de vida e esperança como ele. Não era um ser social, voltado para os prazeres das conversas prolongadas nas noites de verão.

Não, tinha se tornado um homem do frio, do inverno, da solidão de um quarto de apartamento.

Agora estava ali, entre aquelas prateleiras abarrotadas de livros e pastas com documentos e tinha a sensação que um pouquinho do avô ficara ali também. Estava assim, absorto, quando a mãe iniciou o que passou a ser a tal reunião.

Tavinho estava encostado numa das poltronas de couro, meio estirado, talvez mais preocupado com a sua dissertação, sua vida lá fora, seus compromissos bem mais gratificantes.

Ricardo e Letícia sentaram-se lado a lado, nas poltronas que ficavam em frente da imensa mesa de mogno, coberta de vidro.

Sandoval mostrava-se inquieto, não parando em lugar nenhum, a não ser vez por outra, estabelecer-se no parapeito da janela que desembocava numa área fechada, uma espécie de jardim de inverno. Ao ouvir a voz de Santa, fez um pequeno reparo: — Santa, desculpe interromper. Gostaria que evitasse falar na bússola. No momento, é um dado supérfluo.

— Talvez você tenha razão, Sandoval. Não se preocupe, tudo a seu tempo.

— Mamãe, não acha que está muito solene?

— O momento exige, ou melhor, a situação assim exige, Letícia. Mas serei apenas o suficiente, nada que vá tornar esta reunião demasiado enfadonha.

— Assim, espero – resmunga Ricardo, em seguida, se desculpando.

Tavinho insiste, com um meio sorriso, para não desagradar a mãe: — Vamos começar, então?

—Estou pronta para começar, meus queridos, mas o grupo ainda não está completo.

— De que a senhora está falando? A família está toda reunida. A quem você se refere, mamãe? – Letícia revela impaciência.

Santa, ao contrário, não muda o tom de voz, nem mesmo se embaraça com alguma pergunta mais incisiva. Parece ter tomado o rumo ideal, palmilhado a trajetória que faz sentido a sua vida.

— Por favor, Sandoval, esclareça aos nossos filhos.

— E genro, dona Santa. Não se esqueça de mim – adverte Ricardo, tentando brincar.

— Absolutamente, meu filho. Você é como um dos nossos filhos – e dirigindo-se ao marido, repete o pedido para que esclareça a observação anterior.

Sandoval, por sua vez, revela-se mais inseguro. Afasta-se da janela e aproxima-se da poltrona onde Santa está acomodada, atrás da mesa. Ainda em pé, explica: — Bem, quando sua mãe pediu para conversarmos, ela me convenceu a … Bem, vocês logo saberão, ela achou por bem convidar o bispo Martim para esta reunião.

— Mas por quê? Não faz sentido.

Ao ouvir a observação de Letícia, Alfredo a examina como se não a reconhecesse. Tamborila os dedos nos braços da poltrona e volta a olhar em torno, como quem procura uma resposta para tudo. Talvez, pense em seus próprios problemas. Sua mente anda por paragens bem mais longínquas.

— Sua mãe explicará o motivo do convite mais tarde, Letícia. Tenha paciência, por favor. – e voltando-se para Linda, acrescenta – Há ainda outra pessoa. Linda.

— Era só o que me faltava, mamãe. Até os criados fazem parte da nossa família agora! O que Linda tem a ver com tudo isso?

Ricardo acompanha intrigado o desabafo da mulher. Astucioso, estica o braço até Alfredo, para alertá-lo, perguntando com exagerada preocupação: — Será que sua mãe está bem da cabeça? Não me leve a mal, Alfredo, mas não é normal convidar a empregada e o bispo para uma reunião familiar. Convenhamos!

— Linda é quase da família, Ricardo. E para minha mãe, o bispo também, afinal, ela vive praticamente mais na igreja do que em casa.

— Mas é um absurdo!

Tavinho chama a atenção dos dois, irritado, partindo na defesa da mãe.

— Por que vocês estão discutindo? Nem sabem o teor da conversa, o que ela quer com a gente. Não sei porque você está tão preocupado com esta reunião, Ricardo, você não dá a mínima para nada que diga respeito a nossa família. E você, Alfredo, vive enfurnado em si mesmo, parece que vive só de lembranças!

Antes que a discussão tome proporções desagradáveis, Sandoval aproxima-se dos filhos e pede paciência. Chega ainda a tempo de impedir que Letícia tome partido do marido. Logo em seguida, Santa o chama e ele se desdobra em mostrar-se à vontade, coisa que está longe de sentir.

Santa pede que ele chame os demais convidados que estavam aguardando na sala contígua.

O bispo entra na biblioteca com um sorriso de porcelana, cumprimentando a todos com leves acenos de cabeça e uma certa solicitude que desagrada Tavinho. Acomoda-se imediatamente na poltrona indicada por Santa, que o conduz pessoalmente.

Linda estaca na porta, se desculpando por ter sido chamada. Tenta explicar que veio a pedido da patroa, mas Alfredo a impede, levantando-se e tal como fizera a mãe em relação ao bispo, a conduz para uma cadeira próxima à janela.

Ela estremece ao atravessar a sala, a qual não costuma entrar a não ser para organizar alguma faxina. Senta-se rapidamente, acomodando as mãos nos joelhos, como se quisesse dispersar o foco da atenção que sua presença despertava.

Santa examina a todos, como se pretendesse fixar para a eternidade a reação pessoal de cada um. Seus olhos revelam uma luminosidade estranha, talvez um misto de curiosidade e emoção.

— Bem, não é segredo para ninguém que um fato importante, um acontecimento muito tocante aconteceu comigo, nesta casa. Um fato que confidenciei apenas à Linda, e este é um dos motivos pelos quais ela está aqui. Este acontecimento mudou a minha vida e por consequência, mudará a vida de todos nesta casa. Sr. Bispo, meu marido, meus filhos e meu genro, eu quero afirmar para vocês que eu tive a graça de ver a imagem de Nossa Senhora. A visão material da Virgem na minha casa!

Houve um breve silêncio. Em seguida, todos falaram em uníssono, sem se importarem com a dona da casa ou com boas maneiras.

Até mesmo o bispo confidenciava a Sandoval sobre o fato, exercendo uma espécie de argumentação da qual não se sabia se concordava ou não.

Letícia esbravejava, estabanada, dirigindo-se à mãe, pretendo uma explicação convincente. Afinal, por que a Virgem a visitaria, somente a ela e com que objetivo.

Tavinho levantou-se da poltrona e se juntou ao cunhado e ao irmão, agora, unidos de forma definitiva, achando que tudo não passava de uma insanidade de Santa.

Sandoval perturbava-se ante os argumentos do bispo e o pedido de silêncio ao filhos.

Linda não se afastou da cadeira, ao contrário, baixava a cabeça em absoluto desânimo. Se alguém a observasse naquele momento, veria uma lágrima correr-lhe pela face.

Neste momento, Santa munida de extrema energia, gritou abafando todos os ruídos de uma única vez, pedindo silêncio. energia Surpresos pelo grito da mulher, todos pararam, mas logo continuaram o burburinho que imediatamente se transformaria em gritaria, não fosse ela impedir-lhes novamente, com uma batida na mesa com força. Seu olhar os atingia com grande vivacidade, tal a complexidade de sentimentos que a tomavam. Parecia uma leoa rugindo num ato de desespero.

Todos voltaram-se para Santa. Letícia respirou fundo e começou com um “mamãe”, imediatamente interrompido.

— Por favor, Letícia, não fale nada. Não fale nada – e se dirigindo-se aos demais – não digam nada, nenhum de vocês. Só me ouçam. Eu sei que é difícil de acreditar, mas eu posso provar.

Alfredo conciliador, perguntou, quase numa mensagem de súplica: — Como pode provar, mamãe?

Ela pede que sentem-se nos seus lugares. Precisam discutir o assunto sem grande exaltação, sem delírios. Devem ter paciência.

O bispo é o primeiro a obedecer, sentando-se na posição estratégica em que se encontrava. De certa forma, podia observar a impressão dos presentes e os pequenos comentários que faziam um com o outro. Juntou as mãos ao colo, cruzando os dedos como se estivesse em posição de oração e assegurou à anfitriã que a ouviria com toda a atenção e paciência.

Santa agradeceu e quando todos estavam em seus lugares, ela prosseguiu, entusiasmada: — Vou colocar a bússola sobre a mesa. Como vocês devem se lembrar, ela era um objeto que funcionava muito bem, com a orientação da agulha sempre voltando-se para o norte, como ocorre com qualquer uma.

Letícia não se conteve e interrompeu: — E o que isso prova, mamãe?

— Bem, peço que analisem o objeto. A bússola está com a agulha trancada. Nunca mais se mexeu desde que Nossa Senhora indicou o meu norte.

Ricardo levantou-se, curioso. Examinou o objeto, enquanto os demais se empurravam para se aproximarem da mesa. Afirmou, sem nenhum pudor: — Não prova nada, dona Santa. Desculpe, mas a engrenagem pode ter falhado em qualquer momento.

Sandoval saiu em defesa da mulher, mas fez uma ressalva, incomodado por ela ter-se antecipado aos acontecimentos. Falou num tom mais baixo, mas na verdade, todos ouviram o recado.

— Eu lhe disse que deixasse a bússola para depois. Não era o momento.

Ela não respondeu. Dirigiu-se ao bispo, esperançosa: — O que o senhor me diz, Eminência? É uma prova ou não é?

— Há coisas que não se pode afirmar assim, de supetão, dona Santa. Claro que credito todos os meus votos na sua integridade, na sua verdade. Mas acho também, que a sua palavra é muito mais importante do que a bússola. Se Nossa Senhora apareceu em sua casa, não há nada, não há bússola que possa derrubar esta sua convicção. Ao meu ver, a senhora é uma mulher que está em estado de graça!

— Claro, ele tem interesse financeiro nesta verdade – resmunga Letícia, sem importar-se com o olhar severo da mãe. Esta, reinicia o assunto, tentando esclarecer melhor a situação.

— Não me interessa a desconfiança, a dúvida. Eu estou convicta e basta. A Virgem apontou para o norte, sendo assim, eu avaliei a sua proposta.

— Meu Deus, ela fala como se fosse real! Você vai permitir que este absurdo vá em frente, Letícia? Eu sou apenas o genro, mas você é a filha!

— Espere, Ricardo. Vamos ver onde ela vai chegar.

— Que bom, minha filha que você é compreensiva. Eu serei bastante clara nas minhas observações. O norte que a Virgem apontou fica na ilha isolacionista, onde convive um povo estranho, como vocês sabem. Uns adeptos ao monarquismo. Uma comunidade que não precisa, que não quer o meu dinheiro.

— Menos mal – dispara Letícia, ainda tentando descobrir o sentido das palavras da mãe.

Santa finge não ouvi-la e prossegue tranquila: — Pois bem, a minha intenção é usar a minha fortuna na catequese dessas pessoas, na tentativa de mudar-lhes o pensamento, na integração com as comunidades pobres que circundam a região e mostrar-lhes o real mandamento do Senhor.

— Desculpe, mamãe, mas a senhora acha que conseguiria isso com aquele tipo de gente? Se eles não ligam para nada, vão se importar com religião, com catequese? É uma medida meio infantil, sem ofendê-la... – argumenta Alfredo.

—Não se incomode com isso, Alfredo. Há muita coisa a fazer por lá e eu não estarei sozinha, estarei com ela. Mas a Virgem me deu outra proposta e me esclareceu que eu precisava mudar o comportamento dos meus, para poder fazer alguma coisa fora de minha família.

— Como assim, mamãe?

— Muito simples: Vocês precisam mudar o seu comportamento. Ou cada um muda o que desagrada aos olhos de Deus, ou eu assumo a comunidade, passo os meus bens para as comunidades pobres, tento fazer uma mudança na ilha isolacionista.

— Quer dizer que não é uma proposta, mamãe, é uma chantagem.

— Por favor, Letícia, veja como fala com sua mãe – repreende, Sandoval.

— Papai, está muito claro. Ou ela toma conta desta comunidade de malucos ou seja lá o que for, ou nós mudamos o nosso comportamento. Que idiotice é esta?

— Você está absolutamente certa, Letícia – conclui o marido, irônico.

— Cada um de vocês receberá um pequeno envelope onde estarão as medidas que devem tomar para a eventual mudança. Alfredo, Tavinho, você Letícia, Ricardo, Sandoval, Linda e o próprio bispo Martim. Vocês terão seis meses para me provar que realmente mudaram. Se neste período de tempo, eu perceber que um de vocês continua da mesma forma, tudo cairá por terra e eu sairei desta casa para sempre, para viver entre os pobres, os que não aceitam a palavra, ou até mesmo naquele povo estranho que comentamos, afinal, a Virgem apontou para lá. Algum mistério se encontra ali.

O burburinho foi aumentando rapidamente, para se transformar numa balbúrdia geral.

Todos se perguntavam o que teriam que mudar em si próprios, talvez aspectos que nem percebessem ou que evitassem confrontar em suas mentes.

As cartas estavam na mesa e a situação, embora absurda, reunia todos num único objetivo: dissuadir Santa da loucura que estava propondo. Sabiam de antemão que não seria uma empreitada fácil e que ela não parecia disposta a abrir mão de suas convicções.

De repente, um a um foi se afastando do grupo e taciturnos perguntavam a si mesmos, o que estava realmente acontecendo.

Santa pediu a Linda que entregasse os envelopes a cada um dos presentes, com o respectivo nome.

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