No 2º capítulo, Santa entrou na igreja ao lado do marido, observando a família. O filho, artista multimedia estava à esquerda dos demais, um pouco afastado dos parentes. Parecia intrigado com aquela exposição da mãe no dia de seu aniversário. Noutro banco, estavam a filha, uma promotora estadual que mostrava-se muito emocionada e o genro que acenava prudente. O outro filho, muito sisudo, esforçava-se em ajeitar a gravata e naquele momento, esboçar um sorriso. Mas uma outra surpresa foi capaz de desestabilizar Santa por completo, um relicário, um presente doado peloa igreja, através do bispo, que se mostrava sensibilizado. Era uma bússola, que provoca no marido de Santa uma certa indignação. Como hoje é sábado e nosso folhetim dramatico é publicado nas terças-feiras e no sábado, prosseguimos com o 3º capítulo. Divirtam-se!
Fonte da ilustração: site www.morgfile.com
Nem dava para perceber, mas o dia seguinte para Santa havia sido por demais estressante. Estivera entretida entre fotografias, álbuns, além de idas às compras vez por outra, para aviar as tarefas de rotina.
Talvez não precisasse disso tudo, pensou consigo. Afinal era uma mulher rica, que dispunha de um número razoável de empregados; havia coisas porém, que se atribuía a necessidade de se ocupar.
De repente, após o almoço, ficou sozinha.
As vozes que ouvia eram de pessoas quase estranhas, apesar de conviverem há bastante tempo. Pessoas que lhe serviam, que traziam chás, ou transmitiam recados. Pessoas que mantinham o seu bem estar.
Mas não se sentia bem.
A quantas andava o marido, não sabia.
Os filhos já voltaram para as suas atividades.
O tempo passava quase insalubre.
Doíam-lhe as pernas. Doía-lhe o corpo.
Deixou que os últimos servidores se afastassem e deitou-se no velho sofá da saleta de leitura, ajeitou as pernas, deixando os tornozelos encostados no tecido, meio que estirados.
Precisava se refazer do cansaço do dia. Um dia sem nada para contar, sem ter o que lembrar.
A festa do dia anterior, as expressões de carinho, de congratulações. Tudo já era passado.
Agora restava o dia depois, aquele que não devia existir. Como uma ressaca, uma vontade de não fazer nada, um tédio acumulado.
Que fazer, se as coisas mudavam assim, tão repentinamente e ela não mais desfrutava o passado recente como coisa presente. Não, ela já não se dava a estes desfrutes.
Ela se repetia na rotina e a dor parecia bem mais intensa e duradoura. Uma dor de saudade, de distância dos seus, de vontade de permanecer junto. Uma dor a mais.
Ligou a tv, trocou várias vezes de canal.
A tragédia da vida cotidiana pintava todas as telas. Nada acrescentava ao espírito. Quando muito, um filme arrastado, ao qual nem tinha paciência de assistir.
Seus pensamentos retomavam a infância, talvez a idade em que fora mais feliz.
As lembranças se acumulavam lentas, ultrapassando uma a outra numa tela distante. Tanto, que os olhos foram pesando e uma leve sonolência tomou conta.
Embora sem abrir os olhos, teve a sensação de ter alguém muito próximo.
Uma voz cálida que lhe dizia coisas difíceis de entender.
Aos poucos, a imagem foi surgindo, cada vez mais nítida e seu coração saltava em êxtase.
Um aroma suave de flores enchia o ar. Uma sensação de alegria genuína. Uma resposta a todas as dores e sofrimentos. Uma passagem para o bem.
Tinha a certeza de que a Virgem Maria estava ali, ao seu lado.
Encolheu-se no sofá, estremecendo. A voz cessou e um objeto tomava forma na mão da Virgem.
Uma bússola, tal como a sua, com a agulha apontando para o norte, indicando algum lugar por detrás das cortinas.
Santa tinha a sensação desfalecer.
A presença de Virgem Maria ali, na sua casa, com uma bússola devia ter um significado muito importante.
Alguma coisa que certamente mudaria a sua vida, que a transformaria numa outra pessoa, ou então, que ratificaria o rumo correto que alcançara na vida.
Mas por que aquela bússola na direção da janela?
O que havia lá, a não ser uma colina que se estendia até uma pequena ilha.
Por que ela surgira assim, daquela maneira, sem os habituais adereços, sem o rosário, sem as flores?
Por que trouxera um objeto que não agregava um símbolo significativo de sua missão?
Por que não aparecera como de hábito, apenas como a Senhora, a Mãe de Jesus, a Mulher que convidava ao conforto da oração ?
Por que a instigava daquela maneira, ela que sempre seguira os mandamentos, que fora uma mulher exemplar, uma benemérita da comunidade?
O que mais queria dela?
Que caminho estranho estava indicando para que seguisse?
Que chamado era aquele?
Por que ela não virara a bússola para outra direção, para o centro, por exemplo ou mesmo para o bairro onde se situava a catedral?
O que havia de tão importante naquele rumo?
Seria então este o caminho indicado pela Virgem? Uma trajetória desconhecida, a qual deveria se determinar a seguir?
Levantou-se num salto e abriu bem os olhos, mas a imagem não estava mais ali. Não havia nada, a não ser uma pequena brisa que balançava as cortinas da janela.
Então, com as pernas trôpegas aproximou-se da janela e olhou ao longe.
O que havia lá, além da colina, além daquela ilha solitária?
Uma região afastada, na qual vivia uma comunidade isolacionista?
Um povo estranho que se dizia sem regras nem leis?
Uns desviados da política, do poder, do governo.
Uns anarquistas, sem eira nem beira, que viviam às custas do que plantavam ou das trocas que faziam?
Santa estremeceu. Anarquistas? Seria este o caminho? Seria para que ela deveria seguir? Seria este o norte mostrado pela Virgem?
Começou a andar pela casa em absoluto desespero. Chamou os empregados.
Poucos apareceram. Não lhes disse nada. Pediu apenas que Linda, uma velha empregada que lhe servia há muitos anos, ficasse. Pediu que sentasse ao seu lado.
— A senhora quer que traga alguma coisa, Dona Santa? Um chá, um café?
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— Não, não quero nada Linda. – a voz estava trêmula e uma ansiedade se fixava em cada sílaba – Linda, escute, se eu lhe dissesse que vi Nossa Senhora, você acreditaria?
Linda encarou a patroa, intrigada. Sempre fora religiosa, e já tinha visto muita coisa nessa vida, mas ver Nossa Senhora, assim, do nada, era demais.
Evitou porém, dizer qualquer coisa, mas por certo, concordaria com a patroa, para agradá-la.
— Você acha que estou louca, não é mesmo?
— Não, imagina, Dona Santa. Se a senhora disse, é porque é. Afinal, a senhora é tão religiosa. Nada mais justo que Ela aparecesse para a senhora.
Santa levantou-se e dirigiu-se à janela. Avistou um pássaro pousando suave no telhado vermelho que cobria a sacada lateral. As patas finas, o passo gracioso. Olhou para o alto e se benzeu.
Linda a observava, procurando certificar-se de que dissera a coisa certa. Dona Santa parecia transtornada. Melhor não contrariar.
Santa voltou-se e a interceptou, num ímpeto.
— Isso não importa, agora. Preciso saber de outra coisa.
— Como não importa, dona Santa? – insistiu, sem muita convicção. – É uma coisa maravilhosa! Se ela apareceu, é porque tem um motivo. A senhora lhe deve alguma coisa.
— Este é o problema, Linda, o motivo. Ela me pediu uma coisa extraordinária – afasta-se devagar da janela, aproximando-se da poltrona. Segura o encosto por trás, com as duas maos, dobrando o corpo e fala em tom quase confessional – Linda, ela quer que eu me envolva com aquela gente do lado de lá.
Linda ficou ainda mais confusa. – Aquela gente... do lado de lá...? – pergunta tentando adivinhar, sem saber a quem a patroa se referia.
Santa soltou o encosto do sofá e sentou-se na frente de Linda. Insistiu: — Você sabe sim a quem me refiro. O povo lá da colina, ou melhor, depois da colina. O tal povo da Ilha Libertária, parece que é assim que se autodenominam.
Deus me livre, aquela gente não presta. A Virgem não ia mandar a senhora pra aquelas bandas!
— Mas eu não sei ainda o que ela quer de mim, Linda – acrescenta, angustiada. – Talvez ela queira que eu me embrenhe naquela ilha, que convença aquele povo... ou... –
refletindo – talvez eu deva dividir a minha fortuna, minhas jóias, meus bens.
— Como assim, dona Santa?
— Eu sei muito pouco deles, mas dizem que não aceitam dinheiro, que utilizam trocas. Eles são militantes contra o nosso sistema capitalista. Cristo também era assim, como eles. Cristo era um anarquista e queria dividir tudo com todos. E também ele não aceitava governos, nem senhores. – Santa respira fundo, agora a voz soa forte e precisa. Parece fazer um discurso.
Linda a observa sem entender o que realmente pretende. Esforça-se em achar uma frase para participar da conversa.
— Não quero contrariar a senhora, não, dona Santa, mas aquela gente lá não é normal. Como é que um povo pode viver assim, isolado de todo mundo, meu Deus? Pra mim, eles usam é drogas.
— Não é nada disso, Linda. Você não entendeu a proposta, mas eu estou refletindo e aos poucos, estou chegando lá. Quem pode afirmar que eles não estão certos? Talvez seja esta a minha missão, entrar naquela comunidade, participar das suas crenças, ajudá-los. Se eles não usam dinheiro, eu posso ajudar a vida deles com o meu. Dizem inclusive, que são naturalistas, que respeitam a natureza, que vivem com a maior simplicidade.
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— Contam por aí, que eles vivem do que plantam – confirma Linda.
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Santa levanta-se mais uma vez e caminha pela sala enquanto fala. Quem a visse, além de Linda, diria que se trata de outra pessoa. Uma pessoa que encontrou um norte, um novo objetivo na vida.
– Eles são pessoas simples, que vivem do que plantam, você disse. Pois eu quero viver esta vida simples. Não foi o que Cristo disse aos dois irmãos ricos que lhe perguntaram como alcançariam o céu? Vá, vende tudo o que possuís e dá-o aos pobres. Pois bem, eu me acercarei destes pobres e seguirei as palavras de Jesus. A agulha da bússola apontava para aquela região. Pois lá, edificarei a minha seara.
— Dona Santa, não sei se deveria perguntar, mas os seus filhos vão aceitar isso?
— Claro, Linda. Todos entenderão que a partir de hoje, eu tenho um novo caminho a seguir. Portanto, vou reuni-los o mais breve possível, toda a família, para contar-lhes esta empreitada.
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