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A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - CAPÍTULO 17

No capítulo anterior o detetive Júlio Ramirez encontrou-se com o delegado Borba. A partir dessa conversa, teve novos planos e num encontro com o seu amigo Jairo, um madereiro que estava trocando de negócios, com a intenção de instalar um camping na cidade, decide falar sobre os suspeitos.

Capítulo 17


Júlio encontra o amigo Jairo no bar. Tomam uma cerveja e recordam os velhos tempos. Em seguida porém, o tema passa a ser os crimes não solucionados na cidade. Jairo pergunta a quanto anda a investigação do detetive.

— Bom, meu amigo, a passo de tartaruga, como tudo nessa cidade. Mas acho que estou no caminho certo.

— E o que se passou com o delegado?

— Como sabe que estive lá?

— Marília me contou. Ela viu quando você se dirigiu à delegacia.

— Aquela moça fala demais, não acha?

— Sabe de uma coisa, Júlio? Eu ouço e fico calado. Deixo que as pessoas expressem os seus sentimentos, as suas curiosidades e vou sabendo de tudo. É uma boa tática, acredito eu.

—Tenho certeza de que sim.

— Então esteve na delegacia mesmo?

— Estive sim, e a conversa com o delegado Borba a princípio não foi muito producente, mas com o passar do tempo, sei que incuti umas caraminholas na cabeça dele.

— E o que você queria?

— Ajuda. Queria que fizesse uns interrogatórios. Tenho alguns suspeitos, principalmente pelo crime da moça, mas pode haver alguma relação com os demais.

— Você pode me dizer alguma coisa sobre isso?

— Você é meu amigo e confio em você. Claro que sim, mas precisamos conversar com mais sigilo – e aproximando-se um pouco, no balcão onde estão lado a lado, Júlio prossegue em tom mais baixo – tenho alguns suspeitos sim.

— É gente importante?

—Digamos que é gente importante ou conhecida.

Jairo ri irônico, afirmando que todo mundo é conhecido na cidade. Júlio — Sim, mas veja bem. Há pessoas que são conhecidas pela sua atividade, outras porque tem um parentesco importante. A isso que me refiro.

— Aí a coisa muda de figura. Se falamos no prefeito, por exemplo...

— Você sabe de alguma coisa dele?

— Na verdade não, apenas o que todo mundo sabe, ou seja, que é um prefeito relapso. A cidade vive na penúria, faltando asfalto nas avenidas principais, a ponte está em estado precário, as praças em verdadeiro abandono. É meu amigo, votamos mal, muito mal. O sujeito que está aí não correspondeu às nossas expectativas.

— E quanto ao filho dele?

— Esse aí dizem que está envolvido com drogas. Mas é o que o povo diz. Não se tem certeza de nada.

— Pois eu acho que ele é um dos suspeitos – Júlio volta-se para os lados, para ver se há alguém nas redondezas, mas aliviado, percebe que o bar está praticamente vazio. Apenas um casal de namorados conversa animado numa mesa aos fundos, próxima à janela que dá para a esquina. Então, ele prossegue.

— Este rapaz é protegido pelo pai, como andei averiguando. Ele promove as festinhas à beira do rio, contrata prostitutas para abrilhantar as festas, consegue drogas e segundo me parece, é um cara violento. E além disso, meu caro, numa festa dessas onde acontece de tudo, pode acontecer um crime, porque estão desorientados, completamente.

— Sim, é bem provável.

— Mas há outros suspeitos, eu preciso chegar a um definidor comum.

— Como assim?

— Alguns tinham motivos para matar a moça, outros, como no caso do grupo do lual, provavelmente em virtude de drogas e do tráfico.

— E quais seriam os outros?

— Bem, temos o próprio médico, o doutor Ricardo Silveira. Segundo consta, a moça ficou completamente apaixonada por ele, queria que namorassem a todo custo. E o que ele me contou, é que tiveram alguns encontros casuais, sem qualquer compromisso, embora ela tenha confundido tudo. Para livrar-se do incômodo, ele a matou, afinal tem um nome a zelar, uma namorada com muito prestígio na capital.

— O senhor acha que ele a teria matado por isso?

— Tudo é possível, meu amigo. Nos dias atuais, não se sabe em quem confiar, mas particularmente, eu não acredito não. Vou lhe contar um segredo, pra mim, este médico é um bom sujeito. Ele não mataria ninguém. Para a polícia, entretanto, é o suspeito número um.

— É o que todo mundo fala.

— Aqui impera o senso comum.

—E os outros?

— Veja bem, tem um sujeito muito estranho, inclusive é amigo de Ricardo, o médico, embora eles não sejam muito chegados, na verdade.

Jairo coça o bigode, intrigado. Os olhos pequenos e brilhantes expressam uma curiosidade intensa, como se estivesse assistindo um filme de mistério. Aguarda paciente o resultado da lista de suspeitos. Júlio sorri, satisfeito, observando o interesse do amigo.

— Quem é esse cara?

— Raul Soares. Já ouviu falar? É o filho da mulher que me chamou até aqui, por incrível que pareça, a dona Sara Soares.

— Mas por que você acha que ele tem alguma coisa a ver com o crime?

— Não sei se diretamente, mas ele é um cara complicado. É um homem adulto, que foi deixado pela mulher e não se conforma. Vive fumando maconha como um adolescente em crise e se diz atacado por um pessoal da pet shop, que queria matá-lo.

— É verdade isso?

— É o que diz. E olhe como pretendiam matá-lo, injetando insulina no infeliz. A sorte dele é que é diabético.

— Como assim? Não entendi a conclusão.

— Porque segundo os especialistas, as pessoas saudáveis que forem injetadas com insulina podem morrer e o pior, não se descobre o motivo da morte com facilidade.

— Que coisa incrível!

— Pois é meu caro. E imagine você, que a mãe me contratou por um motivo muito especial que já lhe conto daqui a pouco. Na verdade, ela me falou dos assassinos deste tipo de crime, dos que usavam a insulina e principalmente em turistas. O filho diz que foi uma vítima, mas ela não acredita, considera tudo uma loucura da cabeça dele, porque anda muito depressivo por ter sido abandonado pela mulher. Quanto aos crimes, nada foi provado, inclusive o inquérito arquivado. Mas o mais absurdo de tudo isso é o motivo pelo qual me contratou. ela quer que eu investigue Rosa, a maestrina.

— A mulher que trabalha no hotel?

— Sim, ela atua em várias frentes, inclusive é professora aposentada, se não me engano.

— Acho que sim. Mas por que investigá-la?

— Segundo Sara, o filho, o tal de Raul está há muito tempo no coral e sempre foi humilhado pela maestrina. Ela acha que a mulher tem alguma coisa a ver com os crimes dos turistas e inclusive o assassinato de Taís. Para Sara, Rosa no fundo, tem interesse no seu filho.

— E só por isso, mataria todo mundo? É hilário, não acha?

— Não sei meu amigo, não sei. O que eu posso depreender dessa história é que Rosa é uma mulher carente, que precisa do afeto de alguém para sobreviver. Ela inicialmente teve um afeto muito grande por Raul, mas depois desentendeu-se e passou a humilhá-lo.

— Mas o que isso tem a ver com os crimes?

— O ser humano é muito complexo, meu caro. Rosa transferiu o seu afeto para outra pessoa e passou a odiar Taís, exatamente por esse motivo.

— Agora deu um nó na minha cabeça. Não to entendendo nada.

— Já vou lhe explicar. Taís tinha um namorado, um mecânico chamado Paulo.

— Sim, e daí?

— E daí que o Paulo é protegido de Rosa, inclusive quando ele chegou na cidade, ela o ajudou, concedendo-lhe o direito de morar num apartamento que aluga. Dizem que está perdidamente apaixonada pelo rapaz. Isso pode tê-la levado a cometer o crime, não concorda comigo?

— Pensando por esta lógica, sim, sem dúvida.

— Mas tem outro suspeito.

— Outro? Meu Deus, é um quebra-cabeça!

— Sim, o mecânico. Ele amava Taís e tinha muito ciúmes dela, a ponto de tomar satisfações com o médico. Ele pode ser o suspeito número um. Preciso investigá-lo, logo que volte à cidade.

— É meu amigo, você vai ter muito trabalho para desenredar esta trama.

— Você tem razão, até mesmo porque eu estou pensando noutra pessoa. Você conhece o veterinário da cidade? Ainda não sei o nome dele.

— Pois por incrível que pareça, este eu não conheço.

— Pois segundo minhas investigações, ele é um sujeito muito reservado e reacionário. Parece que é engajado num grupo de ultra-conservadores que pretende acabar com os avanços sociais e entre eles, o que ele considera ultrajante na sociedade.

— E que relação pode ter com os crimes?

— Se o cara é reacionário desta forma, um Bolsanaro da vida, quem pode afirmar que ele não lutou para acabar com o que considera imoral, como a própria Taís, que procurava drogas nas festinhas do rio, ou nos turistas que trazem novos costumes à cidade?

— Então, meu caro detetive, temos uma lista enorme de suspeitos.

— É que não lhe falei no seu Domingues.

— Seu Domingues? O velhinho que era dono do posto? Está brincando!

— Ele acusa o médico de negligência com a sua esposa, quando ainda era residente, aqui na cidade. Segundo ele, ela morreu numa crise diabética por erro médico. Será que ele não quer vingar a morte da esposa, provocando outras mortes? Temos que considerar todas as hipóteses, meu amigo. Todas.

— É uma loucura tudo isso. Jamais poderia imaginar que isso acontecesse em nossa cidade tão pacata.

— Mas falando em pacata, me diga como está o seu empreendimento do camping, que você quer construir poróximo ao rio, naquela região da ponte?

Jairo emudece. De repente, uma sombra passa por seus olhos e expressa uma preocupação latente.

— A coisa tá difícil. Não consegui levar adiante. Tem o problema do Ibama que não está liberando, além disso, essa série de acontecimentos está prejudicando o meu negócio. Não to conseguindo fazer uma boa publicidade para uma futura instalação do camping.

— Por causa dos crimes?

— Principalmente destas malditas festas que os jovens promovem. O povo quer um lugar tranquilo, não posso oferecer isso por enquanto.

— Quem sabe as coisas se acomodem, não?

— É o que eu espero. Mas tenho certeza de que de uma maneira ou outra, vou conseguir fazer o meu investimento na cidade. Você vai ver.

Os dois encerram a cerveja e Júlio convida o amigo para uma outra rodada. Este no entanto, parece subitamente apressado em retirar-se. Afasta-se em seguida e Júlio fica observando-o pela vidraça do bar, intrigado.

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