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O PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIX

O NOSSO FOLHETIM CONTINUA AGORA JÁ CHEGANDO A QUINTA-FEIRA, 10/03/16 COM NOVOS DESDOBRAMENTOS DAS RELAÇÕES DE ÚRSULA. UMA HISTÓRIA DE MULHERES, NA TENTATIVA DE PENETRAR NO UNIVERSO FEMININO, COM A DIFICULDADE NORMAL DE UMA AUTOR DE CULTURA MASCULINA. ESPERO QUE TENHA SUCESSO. ESTE É O 19º CAPÍTULO, QUE APRESENTO COM MUITO PRAZER.

Capítulo 18


FONTE DA FOTOGRAFIA: AUTOR WILSON FONSECA DA ROSA, GRANDE ESCRITOR, POETA E FOTÓGRAFO RIO-GRANDINO.

Capítulo 19

Sabe, Dulcina, às vezes me pergunto porque acabo indo nas suas águas. Na verdade, sempre refutei tudo o que você me dizia, todas as histórias que em geral achava idiotas, sem sentido. Nunca a vi como um ser humano, estou sendo muito sincera comigo, sabe? Você pra mim, nunca passou daqueles servidores invisíveis, quase descartáveis, que a gente se depara por algumas horas. Que a gente precisa, mas finge que não vê. Que me interessava a sua vida, as suas atitudes desleixadas, o seu jeito simplório de me contar o que lhe acontecia no metrô, na esquina de casa, na feira? Eu tinha outra vida para viver. Outros caminhos para percorrer que não os seus. Ou não. Talvez meus caminhos fossem muito curtos e sem nenhuma aventura e vinha você, falando alto, esbravejando da suas atividades cotidianas, jogando na cara a sua vida intensa. Se esparramando pelo meu tapete, transbordando na minha sala, na minha cozinha, na minha vida insalubre. Não, eu não queria saber de você. Eu odiava essa sua energia.

Sabe que é a primeira vez que falo assim, neste tom? Logo que aquela porta se abria, instintivamente eu recusava me mostrar. Apenas me fechava no casulo e fazia de conta que estava sozinha. Você era menos do que o espremedor de suco da cozinha. Não posso fingir, era muito difícil a nossa relação. Era realmente um sacrifício.
¬¬

–Era mais fácil o retrato, né? Do seu nível.

–Que nível, Dulcina, isso lá é nível? Rita era uma grande atriz, sem sombra de dúvidas, mas como ela existem milhares. No fundo, eu me escondia no passado. É quase um caminho sem volta.

–Só isso?
¬

–Claro que não. Mas agora, não vale a pena decifrar as minhas atitudes. Você as conhece mais do que eu.

–Tá tudo tão estranho, não acha, dona Úrsula? Ta ficando tudo tão leve, tão alternativo.

–Alternativo? Que coisa esquisita você disse. Não tem sentido, Dulcina. Aliás, nesta vida, nada tem sentido. Dulcina, lembra do velho aí da frente?

–Se lembro. O velho assassino. Emparedou a mulher coitada, no meio da sala. Eu vi o concreto mais saliente, nem rebocou direito, o diabo. Para de rir, dona Úrsula, é verdade. Eu juro que vi.

– Dulcina, olhe bem pro retrato da Rita. Você não acha que ela está falando?

– Não sei não. Mas que ela está olhando pra gente, ah, isso ela tá.

–Acho que ela vai contar a nossa história.

–Em inglês?

–Com legenda, não seja boba. E você entende inglês, por acaso?

–Tinha uma moça lá na quadra que sabia inglês mais do que muito professor de curso por aí. Também, coitada, trabalhava na beira do cais.

–Espere.... fique em silêncio. Acho que ela vai... Não deixa, pra lá. Vamos esquecê-la e falar sobre nós. O que é que eu estava falando mesmo?

Impossível não perceber que as duas estão ligadas por laços além dos convencionais de amizade. É um fio condutor que une estas mulheres completamente diferentes. Para mim, que convivo há tanto tempo com Ms. Úrsula, nesta pequena galeria que organizou pra mim, só tenho a lamentar o quanto está perdida. A vida tem sido dura, como costuma dizer, mas também tem lhe proporcionado momentos de aprimoramento, aprendizagem. Seria salutar que os aproveitasse dignamente. Parece que hoje pretendem celebrar a vida de qualquer jeito, como se fossem duas adolescentes. Não há dúvida que optou pelo caminho mais fácil e inadequado. Mas não estou aqui para julgá-las. Talvez o meu dever seja este: narrar o desencadeamento desta história, a partir de meu observatório particular. Afinal, conversamos há tantos anos.

Ms. Úrsula desaba literalmente na poltrona, sem importar-se com as atitudes que este ato impensado pode trazer-lhe. Provavelmente uma dor intensa na coluna, uma lassidão nos músculos. Vejo-a, aos poucos, resvalando, e enquanto estira as pernas negligente, puxa do fundo do pulmão uma fumaça que se esforça em constituir pequenos círculos. Está exultante. A criada desliza no piso encerado, falando em altos brados, trazendo uma espécie de bebida nativa, a qual denomina caipirinha. Não sei onde isto vai parar. De qualquer modo, a vida, pelo menos, neste momento lhes sorri. E tudo é motivo para risada.

Ms. Dulcina, finalmente acocorada ao solo, instiga a patroa a terminar a história que começara.

– Mas o que a senhora está dizendo é verdade, mesmo dona Úrsula?

Ms. Úrsula está vermelha. Por um momento para, fitando o nada. A voz arrastada, reflexiva. Em seguida, porém reaviva a memória, pois grita, destemperada: – verdade verdadeira. O pobre velho era ele. Nem eu acreditava, menina! Susana ficou passada!

A serviçal se debate no chão, frouxa de rir. Parece que a visão do mundo ficou tão zen, que a deixa em perfeito bem estar com a natureza. Fala em tom absurdo.

– Mulhé, eu não acredito, se não fosse a senhora que está me contando, uma pessoa do seu nível, da sua estirpe, eu não acreditava. Falei bem, hem dona Úrsula, estirpe, não é coisa de gente chic?

–Você ta me saindo melhor do que a encomenda, Dulcina. Já nem cabe no embrulho.

–Embrulho é coisa de pobre! Não to entendendo nada!

–É que você está crescendo, sua incompreensível! E como pode dizer coisa de pobre, é a expressão mais preconceituosa que já vi!

Quando se dá conta, volta a rir, confortada que ficara com a explicação. Mas o que fica claro, neste momento, é que o assunto anterior é extremamente interessante, apesar das inúmeras interrupções. Ms. Dulcina volta a ele, sem mais delongas: – e a história da mulher emparedada? Então era tudo invenção da sua cabeça?

– Claro que não. Pensa que sou maluca? Aliás, hoje é o dia em que me sinto mais lúcida na minha vida, desde que meu filho morreu.

– Não vamos falar em tristeza. Nós já fizemos um trato, se lembra?

– Não lembro de trato nenhum.

– Pois se não, vamos fazer agora – com um cotovelo no chão e as pernas juntas, meio dobradas para trás, estica a palma da mão em direção a de Ms. Úrsula – seguinte, a partir de agora, vamos selar um trato. Nada de sofrimento, de dor de corno, de filho perdido, nada disso. Vamos só nos divertir. Pelo menos, esta noite.

–Pelo menos, esta noite, Dulcina.

Ao baterem as palmas das mãos, Dulcina recupera o copo da bebida e o oferece à Ms. Úrsula. Esta se atrapalha e pergunta: – que faço com o cigarro?

– É coletivo. Dá uma azeitada na máquina, mas devagar, que a senhora anda meio enferrujada. Enquanto isso, eu dou uma tragada... A senhora não acha este aroma maravilhoso?

– Dos deuses, Dulcina.

Ficam em silêncio por alguns minutos. Dulcina então se levanta e põe um cd a tocar. Não é seu gênero musical, mas muitas vezes ouviu a patroa executá-lo ao piano, e principalmente ouvi-lo.

– Night and day. Sabe o que é um jazz, Dulcina? Também não interessa. Temos muito tempo para conversar sobre tudo. Sabe que eu nunca tomei uma caipirinha tão saborosa?

–Tempo é o que não nos falta. A gente tem toda a noite pra colocar o papo em dia.

–A gente tem toda a noite. Eu não durmo mesmo. Mas sabe o que eu gostaria de fazer, Dulcina? Sabe qual é o meu sonho?

– Não sei, não. O meu é ficar aqui, puxando este fuminho, jogando conversa fora. Já tá de bom tamanho. Única coisa que penso é no negão. Deve tá pagando todos os pecados!

–Esqueça o negão, menina. Ele tá noutra. Você mesma não disse que ele foi parar no hospício? E lembre do nosso trato.
¬

–A senhora ta engraçada, dona Úrsula.

– Me dá o coletivo, é a minha vez.

Após um fechar de olhos, num torpor de prazer, ela retoma a palavra, nariz obstruído, como se acometida por uma renite letal.

–O meu sonho era ir pra Serra Pelada. Lá, onde o Jaime passou grande parte de sua vida.

Se Madan me contasse, eu jamais acreditaria. Seria o último lugar para alguém conhecer, ao menos que ela queira conhecer água barrenta e a serra que se tornou um verdadeiro abismo. Mas, como declinei inicialmente, não estou aqui para analisar suas atitudes.

Quando ela retomou a história que começara, eu tentei me desligar, e finalmente foi o que fiz. Deixei que narrasse. Não queria me envolver naquele idílio tão horizontal.

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