HOJE, QUINTA-FEIRA 11/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 10º CAPÍTULO.
Capítulo 10
Cruzes! Então o velho não se aguenta sozinho, precisa de alguém pra fazer a higiene. Também pudera, aquela mania de falar sozinho em plena janela do apartamento, olhando para a rua, deve ser fraqueza mental. Os neurônios não se coadunam. Pobre diabo! Depois de saber disso, me dá até dó, afinal é um homem doente e tudo que diz talvez não passe de simples imaginação. Coisa da cabeça dele. Esta vida é muito triste para velhos como ele. E como eu, também. Não fosse você, Rita, eu já teria enlouquecido nesta casa, sozinha. Quando Carmem enviuvou ainda me visitou algumas vezes, embora mais preocupada com a casa do que comigo, revirando o passado, criticando o Jaime, censurando até meus pensamentos. A filha que estava no exterior, de feminista radical se transformou em mulher de milionário e esqueceu todas as ideias avançadas que tinha na época. Carmem, aos poucos, foi me abandonando. Quando o Jaime morreu, ela não esteve ao meu lado, não me procurou para dar-me algum conforto, algum carinho. Ao contrário, apareceu apenas para consolidar o que pensava, justificar a ideia de fatalmente este seria o seu fim. O tempo passou, ela foi morar com a filha e praticamente me esqueceu. Uma carta aqui, uma mensagem ali. Nem mesmo quando Luisinho morreu, ela se tornou menos fria. Ficou cada dia mais distante, mais amarga, preocupada extremamente com os negócios orquestrados pela filha, com as vantagens de ter um genro rico. Alguns meses atrás, ela me surpreendeu com um telefonema. Mas acabou, nunca mais nos falamos. Nem sei o que é feito de minha irmã. Quando o telefone toca, o que é muito raro, fico meio alarmada, achando que aconteceu alguma coisa trágica. Sei lá. Esses pensamentos me vem, assim, aos atropelos. Não tem como evitar. Apesar de tudo, ela é minha irmã. Ai, meu Deus, e pensar que o Carlos se perdeu no mundo, imagine, o mundo não é mais inacessível, para um homem com a estrutura econômica dele. Não dizem por aí que o mundo é uma aldeia, mas para o Carlos, parece que não é bem assim. Nunca se casou, viveu exclusivamente para ele, para a sua privacidade. Acho que não queria que nós nos intrometêssemos em sua vida. Tinha lá suas manias, seus caprichos. Se bem que sempre morou tão longe! Às vezes, me vem à lembrança a carinha dele, tão risonha, tão extrovertida, cheia de malícia. Sempre engendrando alguma travessura. Ah, lembro dele, quando menino. Era tão diferente. Como as pessoas podem mudar tanto? O que a vida lhes apronta, que as torna aborrecidas, enfastiadas, amargas? Afinal, hoje em dia, é quase um estranho.
Era menino tão esperto, tão querido. Não podia ter esquecido assim, da gente. Gostava muito de me assustar, mais ainda a Carmem, que era mais boba do que eu. Certa vez, ele inventou uma estratégia de colocar nós duas em pleno acesso de terror. Estávamos deitadas em nosso quarto. Naquela época, a noite começava mais cedo, talvez por volta das 9 horas. Nós estávamos animadas com um tema da aula, que se estendia à freira e suas punições, aos meninos que ficavam em frente da escola. Por um tempo, ficamos no internato e só voltamos para casa nas férias. Minha irmã detestava as colegas, as freiras, o uniforme, as aulas, tudo que se relacionava à escola. Eu, ao contrário, me divertia com o que tinha. Afinal, estava ali, porque era tempo de guerra e papai talvez quisesse proteger-nos, sei lá o que imaginava naquela cabecinha dele. Acho que tinha medo que os alemães invadissem pelo porto e fizessem alguma maldade conosco. Coisas de meu pai. Minha mãe, por outro lado, tinha outros pensamentos bem menos nobres. Veja você, Rita. Ela praticamente forçou o meu pai a matricular-nos nesta escola caríssima, usada exclusivamente pela elite. Na minha idade, Rita, a gente tem em mente coisas assim, inexpressivas, nada relevantes para os dias atuais. Mas me lembro como se fosse hoje, de minha mãe, lendo o regulamento da escola para meu pai. Sei de cor as palavras, frases e expressões. Se não, ouça:
“Aprende-se na escola uma concepção do masculino e do feminino que possibilita julgar natural que meninos e meninas desenvolvam determinadas competências, habilidades e sensibilidades. Aprende-se também que ocupamos uma posição nas hierarquias sociais, ou seja, uma escola constituída por gente que o próprio nome apresenta a pessoa.”
Você percebe a malícia da coisa, Rita? A perspicácia de minha mãe? Ela sabia muito bem que aquela escola distinguia muito bem as habilidades entre homens e mulheres, que segundo o seu pensamento, eram criaturas diferentes, que tinham objetivos distintos. Homem era homem, tinha seus privilégios, liberdade, podia namorar quem quisesse, ter seus casos, andar com as putas da vida e tudo estava arranjado. Como dizia a minha avó, depois do ato, sacudia as cuecas e estava tudo bem. Não respingava nada na sua reputação, mas a mulher, Deus me livre, ou ficava mal falada ou embuchada! Meu Deus, como estou ficando obscena. Deve ser a convivência com a Dulcina.
Mas o que eu estava falando mesmo? Ah, da minha mãe. Coitada, no fundo, ela só queria o nosso bem, mas do jeito dela, você sabe. Mãe tem dessas coisas, de escolher o futuro dos filhos. De pensar que pode pintar o quadro segundo a sua ótica. Mas, na maioria das vezes, o quadro vira um caos, uma mistura de tintas que não tem vanguarda que aceite! Eu, por exemplo, se pudesse interferir na vida do Luisinho, ele nunca tinha casado com aquela lá. Mas isso, é outra história, aliás, bem mais adiante daquele tempo!
E tem outro aspecto, Rita. Além disso, minha mãe identificava a riqueza das famílias que punham seus filhos naquela escola e queria esta vivência para nós também. Queria que fôssemos diferentes daqueles pés rapados que frequentavam a nossa casa, principalmente os amigos de Carlos, os quais deplorava. No fundo, o seu desejo era que nos uníssemos às pessoas de classe alta, para que crescêssemos, tal como eles. Um sobrenome conhecido tinha prestígio, abria portas, trazia dividendos. Some-se a isto, o fato de que as escolas católicas significavam o criadouro por excelência da formação de grupos de elite no Brasil, isto desde o período colonial. Imagine, devia pensar ela, matricular as meninas num estabelecimento renomado como esse, representava uma dupla operação de agregação e segregação social, pois mantinha a distância espacial e social dos grupos populares e nos mantinha no seio das famílias renomadas. Finalmente, para fechar o quadro, costumavam casar-se no mesmo grupo para perpetuar o bom nome da família e não arriscar misturas extravagantes.
Sabe Rita, lembro do primeiro dia em que tivemos que usar o uniforme. Pior do que usá-lo era o ritual de despirmos, na hora de dormir, pontualmente às 22 horas, as freiras apagavam as luzes do dormitório. Ah, era realmente muito engraçado. Imagine uma coisa dessas nos dias atuais. A meninada se revoltaria, na certa.
Minha mãe desceu do carro de praça e nos apresentou à Madre Superiora. Ela estava convenientemente vestida. Trazia na cabeça um chapéu de feltro, pequeno, estilo militar, que pela posição produzia uma leve sombra nos olhos. Mamãe era muito bonita. Os olhos claros, azulados. A boca bem desenhada, com um batom não muito forte, evitando parecer artificial. A pele branca de pó de arroz. Trajava um vestido do tipo que imitava uma saia com casaco, em tweed com pregas finas e envolto num cinturão de verniz. O sapato era fechado, preto, de salto grosso e um laço que fazia as vezes de cadarço, cujos pés ocultavam as meias de náilon que lhe emolduravam as pernas longas e firmes. Para completar, uma bolsa marroquin e Karoseal estampado, em preto e branco. Ela em nada destoava das demais mães que frequentavam a escola: estava muito elegante.
Conversaram um longo tempo e em seguida pareciam grandes amigas. A madre superiora apresentou a escola, após descrever toda a metodologia pedagógica tanto nos aspectos acadêmicos quanto religiosos. Interessava-nos, porém, o pátio que nos parecia imenso, num estranho formato em u, repleto de bancos sob árvores frondosas e um pequeno chafariz vindo da França dividia o hall distinguia o pátio da entrada aos prédios, à capela, aos apartamentos das freiras, aos dormitórios, enfim, a planta geral da escola. Algum tempo depois, alegando outras atividades, deixou-nos sozinhas.
Sentamos as três num dos bancos da escola praticamente deserta, por tratar-se num período de fim de ano. Minha mãe mostrava-se forte, mas eu percebia que seu olhar estava pesado, suas mãos até tremiam. Carmem chorava muito, agarrada em seu pescoço. Eu ensaiei algumas lágrimas, por pura imitação. Estava triste, mas ao mesmo tempo, muito animada com aquele ambiente novo, aquelas novidades que se me apresentavam. Na verdade, só uma coisa me deixava triste: o meu piano, que ficaria abandonado, à mercê da poeira diária, no qual somente tocaria quando voltasse para casa. Quando minha mãe saiu e a vi afastar-se no carro de praça, foi o único momento que senti meu coração apertado, como se a realidade se antecipasse ao sonho, ali, dura, petrificada, sem volta. Mas, logo em seguida, ao sermos chamadas e apresentadas aos nossos uniformes, já me dei por satisfeita. Carmem os detestou, e com razão. Eram um estorvo aos movimentos. A começar pelas roupas íntimas. Devíamos usar calçolas, cujos elásticos se prendiam às pernas, formando uma espécie de balão. Sobre os seios, havia uma faixa, não recordo muito bem o nome daquele veste, cujo objetivo era transformar-nos numa tábua. Imagine, aquela espécie de atadura envolvendo todo o nosso corpo. Carmem costumava sentir falta de ar. Na verdade, sempre achei que era fita dela. Não era pra tanto. Depois desses primeiros vestuários, colocávamos uma anágua de algodão que descansava nos joelhos. Sobre tudo isso, o uniforme azul-marinho. Uma saia pregueada casaco marinho sobre a blusa branca, de gola e punhos engomados. Nas pernas, meias que iam até os joelhos e nos pés, sapatos pretos, de salto baixo, bem lustrosos.
Ai,ai, ai, Rita, que engraçado... Eu já lhe contei sobre a hora de dormir, quando tínhamos de despir tudo aquilo? Ah, pois bem. Ficava uma freira na porta, aguardando que todas se acomodassem. Nós naturalmente nos despíamos do casaco, mas as demais peças exigiam um verdadeiro protocolo para serem retiradas. Enfiávamos a camisola imensa, de cambraia, que ia até os pés e em seguida, retirávamos por debaixo as demais peças, a blusa, a saia pregueada, a cinta que cobria os seios e nos deitávamos. Quando tudo estava quieto, a freira apagava a luz e se afastava. Não admitia um sussurro.
Mas imagine você, que certa vez, eu sonhei em ser freira! Acho que em virtude daquele cerimonial todo, aquela disciplina quase sagrada, aquela religiosidade... mas foi passageiro. Logo que botei o pé na rua e conheci o Jaime, percebi que o meu mundo era outro. Mas isso é história para outro dia.
Me parece que ia lhe falar alguma coisa sobre o Carlos, mas dei de ter estas falhas de memória – deixa pra lá, a gente ainda tem muito o que conversar, Rita.
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