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O DOCE BORDADO AZUL - 22º CAPÍTULO

Hoje é quinta-feira. Nosso folhetim continua com o 22º capítulo. Na próxima terça, continuamos na sequência. Espero que gostem! Faltam 8 capítulos apenas!Vamos a ele!

Capítulo XXII

A visita de Gustavo

Quando entrou, Gustavo imediatamente acomodou-se no sofá, observando atento os outros móveis. Percebeu que Bárbara sentara na lateral de um divã antigo, com as pernas finas enviesadas, uma colada na outra, de uma maneira que julgava elegante. Pensou em fazer um galanteio, mas calou-se. Ela poderia levar a mal, achando que havia algum interesse de sua parte, que não fosse o motivo por que viera até a sua casa.

Bárbara, vez ou outra, virava o rosto para a janela, olhar perdido nos telhados cheios de musgos e plantas que se sobressaíam, cultivadas pela umidade das infiltrações. Ele achava-a uma moça estranha. Tinha uma certa tristeza solene, que não conseguia decifrar o motivo. Via em seus olhos uma dor inatingível, o que não lhe diminuia a beleza e simplicidade. Talvez pela atitude segura com que opinava.

Bárbara foi a primeira a falar: por favor, Senhor Gustavo, não me contou ainda o que começou no celular.

–É verdade, estava pensando. Sabe, como advogado, eu já lidei com todo o tipo de pessoa e aprendi a analisá-las. Isso já faz parte do meu jeito de ser, quase como um detetive. Fico examinando-as, encontrando falhas no caráter ou mesmo, qualidades.

–Mas eu não gostaria de ser examinada.

– Oh, não se preocupe. De você, eu só analisei coisas boas.

Bárbara calou-se e voltou a olhar para as janelas. Ele continuou no mesmo tema.

–Você me parece apenas uma pessoa triste. Não me leve a mal, mas foi só o que eu vi.

–O senhor pode ter razão, mas vai passar, um dia.

Ele repetiu, “vai passar, vai passar”, como devesse concordar.

–O senhor afirmou que conhece Lúcia e a mãe.

–Laura. Uma mulher envolvente! Sabe, eu tive um probleminha, um pequeno contratempo e foi Laura quem me socorreu.

–Como assim? O senhor esteve doente?

–É, digamos que foi o que me aconteceu. Estive doente, passei mal e ela me ajudou muito. Então nos tornamos amigos.

–Mas Laura é uma pessoa estranha.
¬

–Você tem razão, muito estranha. Eu sou aposentado, você sabe. Como moro há algum tempo na rua delas, eu passava muito pela frente da casa. Percebia que ela ficava sempre espiando por detrás da cortina, ou na cara dura mesmo, pesquisando toda a vizinhança.

–Até aí, não tem nada de mal.

–Aí é que tá o problema. Eu comecei a investigá-la também. Comecei a perguntar sobre ela, andei pela vizinhança tomando informações, sabe. Conversa vai, conversa vem, descobri uma série de coisas. Dizem até, mas claro, não provam nada, que ela matou o marido.

–Sr. Gustavo, não acha que é uma acusação muito grave para andar espalhando por aí?

– Não fui eu quem falou, foram pessoas que conhecem Laura há muito mais tempo do que eu. Dizem que o velho estava muito mal e ela foi só cuidando dele com chazinhos, deixando os remédios de lado, dando sopinhas ralas e ele foi ficando fraco, cada vez mais doente, até que morreu. Os vizinhos pediam que ela levasse o coitado para o hospital, mas que nada. Corria todo o mundo, não deixava ninguém entrar na casa. Até a empregada, ela despachou. Dizem até que o moribundo ficou tão fraco, mas tão fraco mesmo, que não saía de um tal quarto, que existe lá na casa e que ela fecha a sete chaves.

– Isso pode ser lenda. Era o que o senhor queria dizer-me, é que...vou ser bastante franca, na verdade, não quero saber nada daquela gente. Eu pensei que havia alguma coisa que me dizia respeito.

–Mas claro que há, só que eu sei de muita coisa. Imagine que entrei naquela casa principalmente para encontrar o tal quarto, para ver se era verdade realmente.

–O senhor me desculpe, mas não estou interessada na vida daquela mulher.

–E se eu lhe contasse que ela fingiu ser a filha?

–Como assim?

–Bem, ela me fez umas confidências, mas se você tivesse uma água, um refrigerante, ia ajudar muito a minha garganta!

Bárbara o fitou por um instante, tentando entender a situação. Levantou-se, então e dirigiu-se à cozinha e trouxe um copo de guaraná. Gustavo tomou a bebida e ensaiou uma espécie de suspense.

–Ela talvez pretendesse coisas que não se pode nem imaginar. Por isso a segui, fiz de tudo para entrar naquela casa, conhecer o tal quarto. Mas o máximo que conheci foi uma cozinha alagada.

Lúcia aproximou-se da janela e se encostou na vidraça que ficava na mira dos telhados. Abriu-a um pouco, tirou um cigarro do maço, acendeu-o e deu uma tragada para fora.

–Desculpe-me ficar aqui, assim não o prejudico com a fumaça.

–Não se preocupe comigo. Já estou acostumado.

–Laura fuma?

Gustavo hesitou por um instante, mas logo concluiu: nunca a vi fumando. Gosta de beber e com um prazer que pouco se vê numa mulher.

Lúcia fumava pausado, parecendo habitar nela uma inesperada calma. Um gato passeou curioso pelo terraço do vizinho. Ela o observou, enquanto refletia: parece que o senhor a conhece bem.

Gustavo sorriu satisfeito.

–Não tão bem como eu gostaria. Se bem, que ela é uma mulher transparente.

–O senhor acha?

Ele meditou um pouco, revendo Laura, lembrando as suas frases ladinas, a sua argúcia.

–Na verdade, tem um lado que ela deixa à mostra, acho que de propósito, para identificar o caráter de uma forma sólida. Mas não sei até que ponto ela pensa como se expressa.

–Então o senhor não a conhece bem – replica Bárbara, esmagando a bagana no cinzeiro de vidro que tinha no parapeito da janela, fechando-a, em seguida. Logo volta para o divã onde estava sentada, ficando na mesma posição anterior. Ele, por sua vez, concordou que não conhecia Laura como imaginava, mas estava aos poucos, descobrindo a sua real personalidade.

– E por que tanto interesse?

– Não sei, acho que é aquela coisa da profissão, como lhe disse no início. Um pouco de detetive, de psicólogo. Todo advogado é um pouco assim e além disso, muito desconfiado.

– Mas o senhor ainda não esclareceu porque Laura costuma se passar pela filha. Isso tem a ver comigo?

Gustavo mais uma vez silenciou, analisando a reação de Bárbara. Quando falou, percebeu que ela mais uma vez ficara agitada. As mãos já não paravam à vontade, no regaço. Por momentos, torcia os dedos e estremecia os lábios, revelando certa ansiedade.

– Como lhe disse no início, tem muito a ver com você. Laura me disse que vocês eram muito amigas, mas que tinham se separado, em virtude de vários fatos, a sua ida para o exterior foi um deles.

–Ela falou assim de mim?

– Brevemente.

–E por que falou em mim?

–Porque se referia à Lúcia, apenas isso. Disse que a moça era doente, o que eu verifiquei mais tarde que era um mentira deslavada. Lúcia não tem nada de doente, pelo contrário, é uma mulher esperta e inteligente.

–Por que ela teria mentido?

–Não sei, mas penso que é uma forma de dominação.

–Dominação?

–Sim, Laura é uma mulher extremamente autoritária e dominadora. Gosta que todos ajam de acordo com as suas determinações. Não importa os meios para conseguir, até mesmo se passar por inocente. É uma mulher ladina.

–Eu sei disso. Mas por que se passava por Lúcia, como?

–Muito simples. Nas mensagens que ela enviava a você, nos e-mails, nas cartas. Ela mandava até fotografias da filha, como se ela as estivesse enviando.

Bárbara sente-se abalada com a revelação. Nunca tinha imaginado que tal coisa acontecesse, mas agora percebia que era uma situação viável. Afinal de contas, Lúcia chocou-se tanto com as acusações que fizera. Então, pode ser que tudo não passe de um engano, e que Laura realmente tenha se passado por ela. Mas com que interesse?

– Como lhe disse, para dominar a situação, saber tudo o que se passava a seu respeito, controlar a sua vida. Quem sabe, no fundo, acha que está protegendo Lúcia de alguma maneira!

–Mas isto é ridículo! Então eu seria uma ameaça para Lúcia.

–Talvez porque desestabilizaria o mundinho das duas, não sei. São só deduções. Além disso, ela acha que a Lúcia é uma mulher dependente, que teme o futuro. Talvez pense que agindo assim, pudesse afastar o seu presente brilhante da vida fracassada da filha.

Bárbara não sabia o que pensar. Então todas as cartas e mensagens eram de Laura e não de Lúcia. Ela até tinha aprendido algumas expressões russas e conversava com ela sobre a língua, inclusive pedia a sua ajuda. Conclui que Laura está enlouquecendo, ao que Gustavo concorda.

–Eu também vejo um traço de loucura, não é normal ela se passar por outra pessoa. Não há motivo que justifique. Mas veja bem, eu não sei de mais nada. Ela nem me contou tantos detalhes assim, apenas falou-me de uma amiga que a filha tinha, que se chamava Bárbara, estava no exterior com quem se correspondia, usando o nome da Lúcia. Todo o restante, eu deduzi.

– Me parece que o senhor quer descobrir mais alguma coisa, se não, por que estaria aqui, me contando tudo isso.

–Eu quero descobrir sim, mas depende de você.

– De mim? Por quê?

–Eu estou aposentado e você sabe, Lúcia, um advogado aposentado é um homem pobre. Hoje em dia, precisamos trabalhar sempre, toda a vida.

Bárbara o olhava intrigada. Percebia que Gustavo pretendia tirar algum proveito da situação. Desde o início, o achara muito interessado na história.

– O que lhe contei é apenas um aperitivo. Mas posso descobrir mais, muito mais, inclusive das duas. Basta você me contratar.

– Contratá-lo?

– Sim, como detetive. É uma profissão, que passei a adotar. Você paga os meus honorários e eu descubro tudo para você. E olhe que ali tem mistério, muito mistério. E os segredos não ficam só com Laura. A filha também é muito estranha.

Bárbara retira outro cigarro da carteira. Faz o mesmo gesto anterior, dirigindo-se novamente para a janela. Desta vez, senta-se no parapeito. Poucas luzes nos terraços escuros. Um gato mia sedutor. Outro passa o rabo, quase na mão de Bárbara, que a retira com um suspiro. Gustavo a observa ansioso. Ela dá uma baforada para fora, desta vez nervosa. Volta-se para ele e afirma que não tem interesse nenhum em desvendar os mistérios de Laura. Gustavo, desapontado, insiste que ela não se arrependerá se tocar em frente, ele pode ajudá-la, quem sabe saber os verdadeiros motivos que levaram Laura a se passar pela filha. Quem sabe, ela queria aprontar alguma em cima dela? Talvez houvesse fatos terríveis, que ela desconhecia.

–Não estou interessada Sr. Gustavo. Mas lhe prometo, que se decidir alguma coisa, neste sentido, eu o chamarei. Agora, não tenho cabeça pra nada. Preciso pensar, há muitas coisas que o senhor desconhece. Quem sabe, refletindo melhor, eu possa até precisar dos seus serviços. Por enquanto, não.

Gustavo levanta-se da poltrona, dando por terminada a conversa. Agradece, sustentando que ela não se arrependerá se decidir procurar a sua ajuda. Aperta a mão efusivamente e afasta-se rápido. Bárbara ainda com o cigarro na mão esquerda, empurra a porta com a palma da mão e o pulso, enquanto com a outra, gira a maçaneta. Faz o gesto maquinal, pensativa. Recorda a história de Irmã Dolores, da carta em russo, da estranha história em reunir as três, das chantagens de Lúcia. Será que Laura está envolvida em tudo isso? Será que foi ela quem armou toda esta trama absurda? Uma pessoa normal não se sujeitaria a este papel ridículo. Mas Laura não parecia uma equilibrada. E se Gustavo tivesse razão? Se houvesse outros segredos ocultos? Quem sabe, ele não prestaria uma boa ajuda? Precisava limpar a honra de Irmã Dolores e para isso, talvez pudesse contar com ele.

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