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Vida empalhada

Não sei se era noite de lua ou escuridão total, nem se as luzes artificiais da rua iluminavam as frestas das persianas. Sabia, no entanto, que suava frio e ouvia os escarros da velha, no quarto contíguo. Puxava um cigarro, certamente, ouvindo vozes, como de hábito. Doía-me sua solidão, suas horas contadas sem futuro. Mesmo que ouvisse suas histórias na infância, não me furtava em ouvi-la ainda hoje, embora desandasse em enfadonha canseira. Não tinha o que fazer com ela, a não ser esperar que se escoassem os dias, as noites, o tempo que lhe restava. Levantei-me devagar e espiei pela porta entreaberta. Estava como eu pensava, mascando aquele cigarro velho, babado, queimando os dedos, do que restava de chama. Aproximei-me, cauteloso, entre as aves empalhadas que simbolizavam a sua mais torpe herança. Avisto-a com pesar. Me parece aflita. Olhou-me por baixo dos olhos quase ocultos nas bolsas enegrecidas. Desviou-os rápido, como se quisesse esquecer de vez, a minha figura. Perguntei por que não dormia. Entoou a voz grave, de cordas vocais gastas, afirmando que nesta noite, seria a decisão.

Sempre me tratava de um modo distante, como se temesse qualquer aproximação. O nariz adunco, os cabelos ralos pendurados sobre os ombros. Alguns fiapos pretos. Às vezes, sentia um pouco de náusea. Talvez pela fragilidade que me incomodava, a dependência, o tempo escasso de viver. Mas estava curioso. De que decisão, ela se referia?

Me olhou desconfiada. Esboçou um leve sorriso. Respo0ndeu mansinho. –Nem eu entendo, moço.

Lembrei dos dias em que era forte, espera, arguta. Vidente, rezadeira, mulher de muitos saberes. Cobrava dia e noite o aluguel do quarto infame que me sugeriu como moradia. Agora mora comigo, como uma herança que não consigo dispensar, como um cão sarnento que temo abandonar e me venha lamber os pés. Eu sozinho, talvez tanto quanto ela. Também sem perspectivas, tão dependente. Por isso, me exaspera sua figura patética, esperando o fim dos dias. Às vezes, acho que a odeio. Mas não tenho onde ir, os míseros tostões que me sobram não dão pra me afastar daqui, para ter uma casa que seja realmente minha. Enfrento devagar a ojeriza. Paciente. Fico em silêncio. Daqui a pouco, ela começa a falar. Como de costume. Não foge do padrão.

– Esta casa foi muito grande. Protegeu famílias inteiras. Mas todos foram embora. – me olha de soslaio, por um segundo e pergunta: – tá ouvindo o vento? Tá fazendo corrupio, lá fora, levantando poeira. Sempre foi um sinal.

Sentei-me próximo, puxando uma cadeira de palha. Ela não levantou a cabeça, mas prosseguiu enfática, apesar da voz estremecida e falha.

– Tá chegando a hora e você precisa cumprir o destino. A minha vida não tem mais cuidado. Tá na hora de debandar.

– Como assim?

– Acabar com ela. Você tem esta missão.

Fiquei petrificado, mas a ideia não me era de todo estranha. Não havia mais tempo. De repente, ficava aí, feito figura de cera, imagem desmaiada de quem já dera as cartas, um dia. Quem sabe era uma oferta, um convite, como aquele que fazem às personalidades, às celebridades internacionais. E para elas cuja imagem sobrepuja qualquer outro aspecto humano, nada mais coerente do que a frase “o convite para virar estátua no Madame Tussauds lhe chegou em boa hora”. Tal como uma estátua do museu, talvez lhe permitisse a chance de permanecer como presença empalhada entre nós. Por que não seguir o seu conselho e transformá-la num daqueles seres embalsamados que preparava no porão da casa?

Mas como fazer o negócio? Não dava pra matar a velha, assim, com a cara limpa. Tinha que tomar alguma coisa forte. Tinha que me transformar.

Cães ladravam na noite escura. Ela tinha acessos de tosse. Depois parava, mas logo iniciava um som surdo, quase suspiro, na dificuldade em respirar. Devia tomar alguma atitude, pro bem ou pro mal. Foi quando bateram à porta de meu quarto. A velha ouviu e ficou quieta. Fui abrir e a luz escassa me deixava ver uns olhos escuros, que assim mesmo brilhavam. Não pareciam humanos. Bobagem. Precisava atender, ver o que queriam, naquele frio e lonjura danada! O homem tirou o chapéu e pediu para entrar. Perguntei o que queria. Era tarde. Trazer desassossego a uma casa quase deserta? Então, ele falou, se escondendo ainda mais na escuridão.

– Sou de tempo mais antigo que ela. Quando essa vida tinha outros ares. Quando tudo parecia não ter fim.

Por que se dirigia a mim, como ela? Era como se falasse através dela, feito ventríloquo. Não tive coragem de perguntar. Mas ele disse.

– Vim cumprir o destino.

– De que está falando? Não acredito em destino, disse isso à velha.

–É melhor se preparar. Fim da trilha.

– Sei o que pretende. Não me engana. Quer me matar.

– Matar é uma coisa que não faço. Vá pela casa, passeie pelos quartos, vá até a cozinha. Procure o quarto da velha.

Não entendia o que queria dizer, mas não havia como retrucar. Melhor obedecer do que morrer. Fiz o que mandou: andei pela casa toda. Examinei cada peça, cada quarto, fui até no banheiro. A casa estava em petição de miséria. Não tinha certeza, mas tinha a impressão de que estava sendo seguido. Uma sombra, um bafejo em meu ouvido. Um frio no estômago. Por fim, bati na porta do quarto. Precisava falar com a velha, quem sabe, já tinha acontecido. Quem sabe, teria morrido? Bati devagar, na primeira vez. Depois com mais força. Por fim, percebi que a porta estava aberta. Entrei, observando as paredes descascadas. Alguma poeira rolava pelo teto. No entanto, ela não estava lá. Havia uma cama desfeita, cobertas atiradas ao chão, a luz fraca do abajur piscando intermitente, alguns livros sobre a mesa de cabeceira. Então, assustado, voltei-me para a porta, que se fechava de súbito. Olhei para os lados, procurei a janela que dava para a rua, aquela janela em que a velha ficava espiando o mundo. Mas não havia janela, não havia rua. E o pior de tudo, aquele era o meu quarto. Por que entrara ali, no meu quarto? O que acontecera com a velha? Fiquei tão sozinho e desolado, que me deu uma estranha compulsão de sair correndo e fugir daquela casa que não era minha, mas que se parecia muito com a da infância, de minha vida atual. A velha não existia mais e o homem que estava à minha porta, também desaparecera. E esta solidão imensa que se intensificava. Aproximei-me da porta, com raiva. Não ficaria ali, nem mais um segundo. Nem que eu mesmo me transformasse em estátua de Madame Tussauds. Seria até melhor. Ficaria sempre com o mesmo sorriso, mostrando dias felizes, sem essa velha solidão que me consumia.

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