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O invisível e suas previsões





Chamavam-no Capitão. Era alto e magro, usava calças abanando ao vento, revelando os ossos que lhe sustentavam o corpo, mãos grandes, calejadas. Tinha um olhar estranho, enviesado e costumava ficar muito tempo no banco da praça. Alguém perguntou-lhe qual era a atividade que tomava conta. Sorria, os dentes amarelados mastigavam a saliva, engolia em seco e geralmente respondia com outra pergunta. Por que não me deixam em paz? Falava vários idiomas, segundo alguns. 

As pessoas que passavam por ele, pouco percebiam seu jeito displicente, sentado no banco, fazendo companhia às pombas que pululavam, se reproduzindo em quantidade extrema.

Um dia, reparei que estava do outro lado da rua, distante alguns metros do largo onde costumava ficar. Vi que se aproximava de uma banca de revistas e examinava detidamente as capas, como se pesquisasse algum assunto interessante. Ficou ali, parado, algum tempo. Logo aborreceu-se, porque afastou-se um pouco, olhando para o chão, mão esquerda dobrada no queixo, a outra estendida alisando a coxa magra, como se refletisse o que havia lido. Voltou em seguida e deparou-se com a revista que me parecia estar mais interessado.

Encostei-me numa vitrine, sob a marquise da loja, porque começava a cair uns pingos finos e procurei abrigar-me. Não conseguia desviar o olhar da cena. Capitão parecia muito interessado. Percebi que chamou a atenção do vendedor, que nem se dignou a responder, entretido em que estava na faina de organizar uma leva de revistas que chegara. Capitão insistiu, mas nisto chegou um outro freguês, que comprou recarga de celular. Atendeu-o e retomou a atividade anterior. Capitão tornava-se ansioso. A saliva brotava-lhe dos lábios, os olhos fixos, com um brilho alucinado. Até que o homem perguntou, negligente, o que queria.

A chuva aumentou, fazendo com que me abrigasse dentro da loja. Ainda prossegui observando Capitão, do outro lado da vitrine. Um balconista me interrompeu, imaginando que deveria vender-me alguma coisa. Mostrou-me calçados, falou-me em bolsas, cintos ou carteiras. Já não o ouvia, tentando explicar-lhe que estava apenas me abrigando da chuva e logo que amainasse um pouco, sairia. Ele se afastou um pouco, mas ficou por perto, talvez temendo que eu não fosse apenas um transeunte atrapalhado pela chuva. Ainda comentei sobre o Capitão, personagem conhecido da cidade, na sua tentativa de comunicar-se com o dono da banca. O rapaz olhou pela vitrine, mas não deu muita importância ao fato. A chuva batia forte no vidro, embaçando a visão.

Do outro lado da rua, a cena se desenrolava sem qualquer avanço, pois Capitão colocava as mãos na cabeça, enquanto a chuva lavava seu corpo mirrado. Afastou-se alguns metros, voltou decidido, parando na frente da banca. Foi só por um minuto, pois desapareceu logo na enxurrada que levava carros e pessoas à tona, em busca de abrigo e fuga do lamaçal.

O dono da banca de jornais, baixou a porta pela metade, impedindo que a chuva molhasse as revistas e talvez temendo que Capitão voltasse. Resmungava sozinho, juntava o que podia rapidamente e espalhava plásticos , envolvendo jornais, revistas e outros objetos que faziam parte do negócio. Olhei em torno, a loja estava cheia de clientes e os funcionários andavam às voltas com o atendimento. Apenas o rapaz que me perguntara, fingia arrumar alguns calçados na vitrine, para cuidar as minhas atitudes.

Resolvi afastar-me, correndo por debaixo de marquises e entrando imediatamente no primeiro bar que encontrara. A tarde já anunciava seus últimos reflexos sobre as lajotas encharcadas, antecipando uma noite escura que surgia entre os prédios, perdidos na chuva que não amainava. Sentia um certo frio, talvez em virtude dos braços molhados e do peito, anteparo para o restante do corpo, enquanto corria em direção ao bar.

Pedi um café expresso, à beira do balcão. Homens conversavam afoitos, falando via de regra em futebol ou nos últimos acontecimentos políticos que estimulavam a frustração da cidade. O vendedor bateu com o copo no granito do balcão, mostrando que eu estava servido. Talvez estivesse distraído, ainda pensando em Capitão, pois tive um leve estremecimento. Olhei-o meio que censurando, mas não disse nada. Tomei o café em alguns goles, aquecendo o corpo. Fiquei ali, algum tempo, encostado no balcão, sentindo o gelo da pedra nas minhas costas.

Um homem aproximou-se e largou uma maleta bem ao meu lado. Parecia preocupado com o horário, pois examinava o relógio, confirmava com o do celular, perguntou-me as horas e respirou aliviado, certificando-se que o seu estava correto. Pediu um café também, mas solicitou algumas gotas de conhaque, que misturaria no líquido, para aquecer a garganta. Mostrava-se ansioso. Os olhos, vez que outra, se grudavam na porta, como à espera de alguém que encontraria numa emergência. Outro atendente trouxe a bebida, desta vez não era o que me servira. Era um menino ruivo, topete nos olhos, cheio de pintas no rosto. Mostrava-se ser muito conhecido dos frequentadores, pois fazia pilhérias a todo momento com um ou outro, exaltando o time pelo qual torcia e desmerecendo o dos demais. O que me atendera o olhava de soslaio, um tanto irritado. Devia ser o dono do bar e não lhe agradava aquela manifestação, que poderia prejudicar o atendimento. Mas nada dizia, já habituado com as manobras futebolísticas do rapaz. O homem que estava ao meu lado, confessou, em dado momento, quase num desabafo. – Deixei de fumar, faz um mês. Mas, hoje, especialmente, não sei se vou suportar ficar sem nenhum. –Mas se faz um mês, é melhor persistir. Quem sabe, esta aflição passa.

          

Ele me olhou como se estivesse a sua frente um alienígena. Suas mãos Tremiam  e o anel vermelho tilintava no granito. Resolveu pedir um conhaque, agora sem o café, um copo cheio. Olhei de esguelha e me aquietei. A chuva já estava parando e estava na hora de voltar para casa, investir nas ruas alagadas até a estação do metrô. Virei-me no balcão para pedir a nota do café e descuidado, derrubei a maleta ao meu lado. Levantei-a rapidamente, pedindo desculpas. Era pesada, a impressão que tinha é que havia um corpo esquartejado e dobrado lá dentro. Imaginação de escritor, pensei. Mas não pude evitar surpreender-me com a ansiedade do homem que a segurou com as duas mãos, como se quisesse protegê-la de um invasor, no caso, eu. Sua voz soou, gutural, metálica. _ Eu precisava tanto dele, e não veio. Deve ser pela chuva.

Não entendi nada, mas concordei com um aceno. Ele continuava a segurar a maleta, enquanto eu contava as moedas que juntava às notas de reais, para fazer o troco. Pedi um drops e voltei-me instintivamente para a porta. Parece que todos faziam o mesmo gesto, comungando da mesma surpresa. Capitão surgiu à porta do bar, cabelos espichados, pingando nos olhos, olhar caído, de cachorro pedinte, a camisa meio aberta, deixando surgir uns pelos ralos no umbigo escondido, as calças meio arreadas, de pés descalços. O dono do bar gritou, exigindo que saísse imediatamente, mas o meu companheiro da maleta, o impediu com um gesto, levantando o braço em sua direção, quase numa súplica. _Não, preciso dele.
Todos os olhares se fixaram em uníssono naquele homem aflito, que segurava a maleta ao meu lado. Quase perguntei o motivo, mas não é que todos fariam de imediato? Não, houve um silêncio geral. O mundo parou, o relógio juntou os ponteiros, indefinindo o horário, o rapaz ruivo encostou os cotovelos no balcão de pedra, ensismesmado, o dono abriu e fechou a boca, mordendo os lábios sem saber o que dizer. Capitão ficou na porta, como chegara, assim, calado, mas ofegante, respirando fundo, tentando cumprir uma tarefa que lhe tinham encarregado. O homem correu ao seu encontro. Perguntou, afetuoso. _Fez o que lhe pedi?
Uma mulher chegou alvoroçada, esgueirando-se entre a porta e Capitão, temendo encostar-se naquele corpo mirrado e sujo. Quebrou o silêncio, pedindo um refrigerante. Mas logo calou-se também. Esperou o resultado da cena, que se desenrolava.
Capitão explicou em voz sumida, que o dono da banca não lhe vendera a revista, que lhe mostrara o dinheiro, que suplicara, mas nada. Mas a tradução estava ali, na sua mão. O texto todo em mandarim.
O grupo que se acotovelava mais adiante, no outro extremo do bar, comentou, quase unânime: _Chinês? Mandarim?
A mulher examinou Capitão e questionou ao rapaz ruivo porque estavam perdendo tempo com aquele mendigo. O guri não soube responder. Riu um riso forçado, para evitar mais conversa e perder o desfecho.
O homem suspirou aliviado, quando o capitão tirou do bolso uma folha de papel toda molhada e com cuidado, tentou não rasgá-la, detendo-se nos símbolos que a enfeitavam. Antes de guardá-la na bolsa, ainda perguntou: _Mas o que você queria na banca, homem?
_Uma revista. Uma revista pra não molhar o papel. Sabia que ia chover.
A chuva cessara por completo. Capitão sabia o que dizia.


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